27.4.24

O 25 de Abril “divide”? Em 2024, divide...

 



«O domínio da direita nos órgãos de informação está a fazer mais uma mistificação, que depois circula com sucesso, não só porque não tem contraditório, mas também porque o espírito de rebanho é muito poderoso. Esta mistificação é despolitizar a parte das comemorações que é mais difícil de “engolir” à direita, que são as manifestações “populares”, com muitas centenas de milhares de pessoas que foram para a rua, muito mais do que é costume, não para comemorar os 50 anos, mas para contrariar aquilo que parece ser a tendência política-eleitoral dos nossos dias: a ascensão do Chega em primeiro lugar e, em segundo, o Governo da AD. Esse foi o grande motivador e, goste-se ou não, não é possível analisar o que se passou sem ter em conta que uma sensação de perda e risco está a mobilizar muita gente contra aquilo que parece ser o statu quo político.

Se este tipo de mobilização se reflecte eleitoralmente nas europeias, é prematuro prever, porque depende de muitos factores. Na verdade, por muito que o facto de centenas de milhares virem para a rua e não se limitarem a uma oposição cómoda seja relevante, este tipo de mobilização pode não ter projecção eleitoral significativa. Mas significa que, com excepção do populismo do Chega, não existe nenhum impulso mobilizador nos outros sectores de direita. Não há grande empatia pela governação da AD, nenhum entusiasmo pela mudança governativa em si, e quer o PSD quer muito menos a sua "versão actual dos Verdes do PCP", o CDS, estão longe de ter a dinâmica que o Chega revelou. Mesmo à direita, as pessoas interiorizaram o impasse político gerado pelo facto de o partido indesejável, o Chega, ser quem decide, e sem o Chega a AD parece ter tido uma vitória de Pirro.

É por isso que a esquerda teve a sua primeira manifestação de força e um grande dia, porque era evidente que na rua era a esquerda e as pessoas que não querem a direita no poder que fizeram a manifestação. Sim, o “25 de Abril é de todos”, mas na realidade em 2024 não foi, porque a manifestação respondeu a um receio sobre a liberdade e a democracia que a actual situação política parece justificar. Pensar que foi outra coisa, e que o que de mais significativo aconteceu na manifestação foi haver famílias com criancinhas, adolescentes, “jovens” na acepção actual – havia igualmente muitos velhos, –, esquece deliberadamente o que diziam os milhares de cartazes artesanais que representavam vozes individuais inorgânicas. Esses cartazes são já mais do que a presença na manifestação, são vontade de dizer coisas com voz própria, com a individualidade de quem os fez em casa num bocado de cartão e com um marcador e que depois se erguem na rua. E as mensagens eram inequívocas, e não se pode falar da manifestação sem as ter em conta.

A manifestação dita “popular” do 25 de Abril tem uma história à esquerda. Sempre foi tida como um contraponto às comemorações oficiais, e umas vezes contra o PS, noutras contra o PSD, conforme quem esteja no governo, sempre representou uma atitude crítica mais à esquerda. Veja-se quem tem sido a comissão organizadora das manifestações, o papel da Associação 25 de Abril, que a abre com as suas chaimites, e partidos como o PCP e o Bloco, a CGTP, e a miríade de pequenas organizações de extrema-esquerda que desfilam.

No PS, para além da ala esquerda do partido cujas personalidades figuram entre os organizadores, é a JS que tem tido o principal contingente. É verdade que quer a JSD quer a IL participaram no fim da marcha oficial, e fazem bem, porque não só têm pleno direito de se manifestar no 25 de Abril, como é correcto do ponto de vista da saudação à liberdade que lhes permitiu a organização e a acção. Mas as poucas centenas de pessoas que com eles desfilaram não alteram a composição global e o sentido político que em 2024 teve a manifestação.

É igualmente verdade que a manifestação tem um ambiente de festa e que já foi noutros anos, com menos gente, mais agressiva no plano político. Mas uma parte dessa festa tem um sentido comunitário, muitas pessoas só se encontram nesta altura e os encontros que se puderam testemunhar eram de pertença e de afirmação de que naquela luta estavam juntos. Como se fosse um exército e uns e outros mostravam que estavam no seu posto. Muitos se encontravam, família, grupos, amigos, saudando-se com palavras de ordem do género “25 de Abril sempre” e o outro lado dizia “fascismo nunca mais”. Não é mesmo a direita que lá está.

A mistificação parte do princípio de que em 2024 há unanimidade à volta do 25 de Abril, o que não é verdade. O modo como à direita, radical, se tem usado como contraponto ao 25 de Abril o 25 de Novembro é objectivamente contra o 25 de Abril, até porque o 25 de Novembro da direita é uma falsificação histórica. Não me parece que o objectivo de criar uma comissão oficial para celebrar o 25 de Novembro seja para homenagear o grande lutador pela democracia em 1975 no plano civil, Mário Soares, ou o partido mais relevante nessa luta, o PS, e os militares do Grupo dos Nove, como Vasco Lourenço ou Sousa e Castro ou Ramalho Eanes e o Presidente Costa Gomes, tudo gente que a direita detesta. E limitar essas comemorações a Jaime Neves, que actuou sob ordens, é um reducionismo absurdo, assim como esquecer o papel decisivo de Melo Antunes, que somou à derrota da esquerda militar no dia 25 a vitória sobre a contra-revolução, recusando no dia 26 ilegalizar o PCP.

Aliás, seria interessante ver como seria a dimensão de uma manifestação “popular” comemorando o 25 de Novembro, e compará-la com a de há dias.»

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26.4.24

Taças

 


Taça Gazela, Art Deco, Steuben Glass,1935.
Desenho de Sidney Waugh.


Daqui.
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Guernica

 



Guernica foi bombardeada em 26 de Abril de 1937.
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26-27.04.1974 – A libertação dos presos de Caxias

 


Que esta memória nunca se apague.

Seis vídeos com a libertação dos presos AQUI.
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Com um cravo na mão à hora certa

 


«Quando perguntaram a Palmiro Togliatti, líder do PCI entre Gramsci e Berlinguer (com Luigi Longo pelo meio) e teórico da “via italiana” parlamentar para o socialismo, o que tinham os comunistas ensinado aos italianos, ele respondeu: “Ensinámos aos camponeses e aos operários a não tirarem o chapéu quando o patrão passa.” Ouvi esta frase quando revi “A Coisa”, o documentário de Nanni Moretti sobre o debate interno antes da transfiguração do menos pró-soviético dos partidos comunistas em coisa nenhuma. Mas não é de comunistas que quero falar. É daquilo a que se quer reduzir a nossa Revolução.

Abril deu ao trabalhador a dignidade de não tirar o chapéu ao patrão, à mulher o direito a deixar de pedir autorização ao marido, ao negro a experiência de não tratar o branco por “senhor”. Primeiro em explosão de liberdade, só depois com direitos formais. O 25 de novembro, que o povo apoiou sem alguma vez festejar, foi necessário para travar a caminhada para o abismo das “vanguardas”. Mas hoje serve para os outros derrotados desse dia (os que Melo Antunes travou quando queriam a revanche saudosista) tentarem criminalizar essa explosão inicial, transformando a Revolução num mero golpe de Estado. Do 25 de Abril fazem parte o 28 de setembro, o 11 de março, o 25 de novembro. Mas só Abril libertou. E resumir essa libertação ao fim da censura e da polícia política ou à adoção da democracia parlamentar é ignorar o que há mais tempo oprimia os portugueses: a miséria, a dependência, o favor, a herança. O que acabou com a indignidade foram os direitos dos trabalhadores, o sistema de reformas universal, as fé¬rias, o 13º mês, a escola pública para todos, o Serviço Nacional de Saúde. Sobraram relíquias, como o corporativismo. Na justiça, onde está intacto, alimenta o justicialismo antidemocrático de uma casta “moralmente superior”. Tivéssemos optado pela serena transição e assim seria tudo o resto, com os velhos poderes a tutelar a jovem democracia.

Não há liberdade a sério para quem vive em necessidade. Quem não tem direitos não pode deixar de tirar o chapéu ao patrão que passa. Não há mulheres livres que não se sustentem a si mesmas. Um cidadão não vive em democracia se o medo impera na empresa onde trabalha. O que libertou e democratizou o nosso país foi, antes de tudo, uma profunda revolução social. Parte vinha de antes, muito chegou depois, como acontece sempre nestas mudanças. Sem exagerar nos resultados, porque ainda somos dos países mais desiguais da Europa, os portugueses libertaram-se quando deixaram de depender do padre para continuar a estudar, da sorte para não morrer no parto, do berço para chegar ao ensino superior, da obediência ao patrão para manter o emprego. Se a extrema-direita ameaça a democracia política, outros têm atacado estas conquistas, que veem como um perigo para a liberdade do privilégio. Não atacam o Abril que nos une. Atacam o Abril que, democraticamente, continua em disputa. Aquele que operou uma mudança ainda mais profunda do que a mudança de regime.

Em “A Coisa”, um outro militante em sofrimento existencial diz: “Quando os comunistas perdem a ideia da revolução, perdem o sentido da aventura. Sem sentido da aventura tornam-se gente aborrecida e, como vimos, até gente perigosa.” Não quero o regresso da utopia comunista que, tendo combatido a exploração onde foi resistência, deixou um rasto de crime onde chegou ao poder. Por estes dias, a (verdadeira) social-democracia chega e sobra como radicalidade. Quero que alguém se recorde que o 25 de Abril não se fez para estarmos de acordo. Se gritamos “25 de Abril, sempre”, é porque ele está sempre em disputa. Quando apenas servir para unir os que defendem um modo de Governo, estará tão morto como o 5 de outubro. Abril deu-nos o direito a sermos do “contra”. Por isso o celebramos com uma manifestação de protesto, coisa incompreensível para estrangeiros que vão espreitar a avenida. Porque ainda não é apenas mais uma festa do regime.

Engana-se quem diz que Abril não se cumpriu. Conquistámos os instrumentos para decidir o nosso futuro. Se, nas últimas décadas, reduzimos a democracia à seleção dos gestores de coisas inevitáveis, isso foi escolha nossa. E essa escolha talvez tenha ajudado a inchar a extrema-direita. A democracia deixou de prometer mais do que o olhar alcança. E isso mata as ditaduras, as democracias, todos os regimes. A extrema-direita cresce porque as pessoas precisam que alguém diga que quer mudar alguma coisa. Apesar de não serem mais do que o sistema por meios mais agressivos, ao menos fingem que são do “contra”. Nós, como diria José Mário Branco, “saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas”. Defendemos as conquistas de Abril, a memória de Abril. Tanto empenho em defender Abril que nos esquecemos que Abril nos trouxe o direito à dissidência. Esquecemos que somos os que um dia tomarão o castelo, não os que o defendem. Se queremos celebrar Abril, reinventemos a desobediência. Ou, perante a evidência que deixámos de conquistar coisas novas, os seus inimigos ocuparão esse lugar.»

Daniel Oliveira
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25.4.24

25.04.1974 – Uma das minhas relíquias

 


(Francisco Sousa Tavares, Nuno Bragança, Maria Belo, eu e Pedro Tamen.)

A tarde tinha acabado, o Largo do Carmo estava já vazio, nós ficámos a andar por ali e a Liberdade também.

(Fotografia de M. de Carmo Galvão Teles)
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Sim, fomos muitos a ver

 


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Poema de Abril

 



A farda dos homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado,
do povo banido
que trouxe das trevas
pedaços de sol.


Foi este o prodígio
de um dia de Abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.


Ficou a herança
de erros e buracos
nas árduas ladeiras
a serem subidas
com os pés descalços,
mas no sofrimento
a farda dos homens
voltou a ser pele
e das baionetas
irromperam flores.


Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.


Sidónio Muralha, Poemas de Abril
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Foi isto todo o dia



E ficou gravada em mim para sempre.
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24.4.24

Um vaso diferente

 


Vaso «Junon», de esmalte policromado em cobre, com pegas e base em prata. Cerca de 1900.
Eugène Feuillâtre.

Daqui.
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Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias depois

 


«A cidade apareceu ocupada e radiosa. Deparámos com colunas militares, inundadas de sol; e povo logo a seguir, muito povo, tanto que não cabia nos olhos, levas de gente saída do branco das trevas, de cinquenta anos de morte e de humilhação, correndo sem saber exactamente para onde mas decerto para a LIBERDADE!

Liberdade, Liberdade, gritava-se em todas as bocas, aquilo crescia, espalhava-se num clamor de alegria cega, imparável, quase doloroso, finalmente a Liberdade!, cada pessoa olhando-se aos milhares em plena rua e não se reconhecendo porque era o fim do terror, o medo tinha acabado, ia com certeza acabar neste dia, neste Abril, Abril de facto, nós só agora é que acreditávamos que estávamos em primavera aberta depois de quarenta e sete anos de mentira, de polícia e ditadura. Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias, só agora.»

José Cardoso Pires, Alexandra Alpha
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Ironias do (nosso) destino

 


Bugalho sai da Impresa, Costa entra no Correio da Manhã.

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