4.5.07

4/5/1968 - Proibição de homenagem a Luther King


Entre as Brumas da Memória..., pp.116-118:

«Em 4 de Abril, foi assassinado Martin Luther King – com o seu sonho, foi um pouco do nosso que morreu também. Em Roma, Paulo VI comparou este assassinato à paixão de Cristo (...).

Pastor da Igreja Baptista, Luther King tornou­­­‑se, desde muito novo, líder dos movimentos não violentos contra a discriminação dos negros americanos. Tinha apenas trinta e nove anos quando foi assassinado.

Em jeito de homenagem, foi preparada e agendada uma sessão a ser realizada em Lisboa, no dia 4 de Maio, exactamente um mês após a sua morte. O local escolhido foi a Igreja de Santa Isabel – com grande empenho, o prior cedeu o anfiteatro anexo à igreja para a realização da iniciativa. Duas frases encabeçavam a convocatória: "Traz contigo uma flor" e "Por cada flor estrangulada, há milhões de sementes a florir".

Deveria ser projectado o filme
Marcha em Washington, que mostra uma concentração, em 28 de Agosto de 1963, em que mais de 250.000 pessoas exigiram emprego e liberdade. Falaram actores como Marlon Brando e Sidney Poitier, cantores como Joan Baez e Mahalia Jackson. Esta última interpelou Luther King gritando: "Fala­‑lhes do teu sonho!". Pondo de parte um curto texto mais ou menos formal preparado para o efeito, Luther King fez então um longo discurso em torno de uma frase que viria a ficar célebre: "I have a dream today!" – sonho de uma América de liberdade e democracia, de todas as raças, de todas as cores e culturas.
[No fim deste texto, verá como pode aceder a um video sobre esta Marcha, com o discurso de MLK na íntegra.]

Na sessão em Lisboa, o filme seria seguido de um debate orientado por Lindley Cintra, Fátima Pereira Bastos, José Carlos Megre e Frank Pereira. Na véspera da data prevista, a PIDE comunicou ao Pe. Armindo Duarte, então prior da paróquia de Santa Isabel, que a sessão estava proibida. Interrogou­‑o sobre os objectivos da mesma e sobre os responsáveis pela sua organização. Dois dos intervenientes previstos – Lindley Cintra e José Carlos Megre – foram também chamados para interrogatórios. Uma das preocupações da polícia foi averiguar se era a Pragma que estava por trás da organização. Deve ter continuado convencida de que sim, apesar das respostas negativas dos interrogados, já que arquivou toda a documentação sobre esta sessão no Processo sobre aquela Cooperativa. Mas não era: ela resultara da iniciativa de um pequeno grupo de amigos que, de passagem por Paris três semanas antes, tinham assistido a uma sessão semelhante e que resolveram reproduzi­­­‑la em Lisboa. Os principais organizadores foram os irmãos Maria da Conceição e Manuel Moita, Maria Antónia Pacheco e Joaquim Osório de Castro.

À hora marcada, concentraram­‑se centenas de pessoas em frente da igreja de portas fechadas. Como em muitas outras ocasiões, tudo acabou com dispersão, à força, desta vez por agentes da polícia à paisana.

Foi depois elaborado, e amplamente distribuído, um folheto intitulado Porquê? com um breve relato dos acontecimentos. Terminava com uma citação do próprio Luther King:

"Não vos posso prometer que não vos batam,
Não vos posso prometer que não vos assaltem a casa,
Não vos posso prometer que não vos magoem um pouco.
Apesar disso, temos que continuar a lutar pelo que é justo".»






Veja aqui o discurso de MLT na íntegra

3.5.07

Paris, 3 de Maio de 1968


Foi este o dia decisivo da mais espectacular revolta estudantil de que há memória. Esta afectou muito profundamente a França, tão profundamente que há um antes e um depois do Maio de 68. Só assim se explica que os franceses continuem a brandir armas em seu nome, como está a acontecer em plena segunda volta da campanha para as eleições presidenciais. Lá chegarei.

A repercussão foi grande no mundo inteiro, dos EUA à China e ao Japão, passando pelo Brasil e pela Argentina. Até em Portugal, onde vivíamos o cinzentismo dos últimos meses do reino de Salazar, se fizeram sentir alguns sobressaltos para uns e muito fascínio para outros - para a minha geração, Paris era a pátria cultural e política e Maio de 68 funcionou como a visão de um paraíso apenas a 2 000 km de distância.

Se há ligações óbvias entre o movimento francês e outros seus antecessores na Europa e nos EUA, a verdade é que nenhum deles teve a mesma força e o mesmo impacto. Foi, certamente, a maior insurreição geral em países desenvolvidos desde a segunda guerra mundial.


A origem mais próxima desta crise estudantil prende-se com a ocupação da universidade de Nanterre em 22 de Março. No dia 2 de Maio chegou ao Quartier Latin, em Paris.


Mas foi no dia seguinte, dia 3, que atingiu maiores proporções. O desenrolar dos acontecimentos foi absolutamente alucinante, começando por uma reunião de solidariedade com Nanterre, passando por ameaças de confrontos entre grupos rivais de estudantes e culminando, ao princípio da tarde, com um pedido do reitor à polícia para que evacuasse a Sorbone. Seguiram-se cinco horas de verdadeira batalha campal, com barricadas, cocktails Molotov, pedradas, matracas e gases lacrimogéneos, que se saldaram por dezenas de feridos e mais de 500 prisões. Os distúrbios continuaram nos dias que se seguiram.

O movimento não se manteve fechado no mundo dos estudantes: extravasou para o do trabalho, a nível de operários, de camponeses e do sector terciário, reuniu-se numa gigantesca manifestação em 13 de Maio e esteve na origem de uma longa greve geral incontrolada.

O que houve de absolutamente específico, e de certo modo inesperado, foi que não estiveram em questão (apenas) motivações sociais ou laborais, mas sim exigências de alterações profundas a nível do relacionamento humano e dos costumes. Recorde-se que uma das causas para a ocupação de Nanterre foi a revindicação de os rapazes passassem a ter acesso às residências universitárias femininas... Ainda hoje se debatem em França, com grandes desacordos, estes temas ligados às características do fenómeno. Não vou por aí.

Mas lembrar-nos-emos sempre da apologia da subversão e da transgressão, do «é proibido proibir», da « imaginação ao poder» – da grande utopia.

Foram-se acalmando as hostes, foi dissolvida a Assembleia Nacional em 30 de Maio e realizaram-se eleições legislativas (que os gaulistas ganharam por larga maioria) no mês de Junho.

Mas nada ficaria na mesma.

Ainda agora, e volto à campanha para as eleições presidenciais, o mais provável (até ver) futuro presidente da República francesa, Nicolas Sarkozy, disse, em discurso muito acalorado (e estava muito calor em Bercy no passado dia 29...):
"Mai 1968 nous avait imposé le relativisme intellectuel et moral. Les héritiers de mai 1968 avaient imposé l'idée que tout se valait, qu'il n'y avait donc désormais aucune différence entre le bien et le mal, le vrai et le faux, le beau et le laid. Ils avaient cherché à faire croire qu'il ne pouvait exister aucune hiérarchie des valeurs. D'ailleurs, il n'y avait plus de valeurs, plus de hiérarchie. Il n'y avait plus rien du tout !".

Surgiram logo protestos de protagonistas lendários de 68. Cohn-Bendit (sempre ele...) disse que Sarkozy é um bolchevique e Jacques Lang veio declarar:
"J'ai participé aux événements de Mai 68. Cela a été un moment de libération dans un pays qui à l'époque était relativement claquemuré. Mai 68 a été un moment où se sont affirmés des droits nouveaux dans tous les domaines".

Ségolène Royal comentou a intervenção de Sarkozy (num comício em 1 de Maio):
"Quelle mouche l'a piqué? (...) Il a tenté de liquider une partie de l'Histoire: Mai 68" e lembrou que, em 68, "De Gaulle a dit que la société voulait le dialogue et la participation et que on lui a répondu par la force (...). Mais Mónsieur Sarkozy n'est pas le général De Gaulle».

Quase quarenta anos depois, a polémica continua viva.

E bem vivos estão também, na nossa memória, os célebres slogans de 68. Aqui ficam uns tantos. Estou certa de que acordarão nostalgias em alguns «soissante-huitards» que por cá andam...


* Soyez réalistes, demandez l'impossible!

* Dessous les pavés, c'est la plage!

* La chienlit, c'est lui! L'anarchie, c'est je!


* Les murs ont des oreilles. Vos oreilles ont des murs.

* Mettez un flic sous votre moteur.

* Ici, on spontane.

* Le rêve est réalité.


* Nous somes tous des juifs allemands.

* J'ai quelque chose à dire, mais je ne sais pas quoi.

* Ne prenez plus l'ascenseur ! Prenez le pouvoir!

* Le pouvoir est au bout du fusil. (Est-ce que le fusil est au bout du pouvoir ?)

1.5.07

1º de Maio de 1973 - o último sem liberdade

(José Dias Coelho, 1961)


As manifestações do 1º de Maio de 1974 foram tão fortes, ficaram de tal maneira gravadas na memória de quem as viveu, ou de quem vai vendo as imagens ano após ano, que podemos ser levados a esquecer o que eram os 1ºs de Maio no tempo do fascismo. Mas não devemos.

Recordo hoje o último – o 1º de Maio de 1973 –, citando uma circular da CNSPP (Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos), datada de 9/5/1973:

«Tem-se verificado, nas últimas semanas, um acentuado agravamento da repressão política no nosso país: com o pretexto de impedir quaisquer manifestações públicas por ocasião do 1.º de Maio, procedeu a Direcção-Geral de Segurança à prisão indiscriminada de um elevado número de pessoas, em várias localidades e pertencendo aos mais diversos sectores de actividade profissional. Só durante o período que decorreu de 7 de Abril a 7 de Maio tem a CNSPP conhecimento de terem sido presas 91 pessoas, cujos elementos de identificação se possuem já. Sabe-se, no entanto, que muitas outras dezenas de pessoas foram detidas (...)
No 1.° de Maio, as zonas centrais da cidade de Lisboa e Porto foram teatro de grandes concentrações por parte das forças das diversas corporações policias e parapoliciais (com agentes fardados e à paisana). No Rossio e em toda a área circundante essa presença não se limitou ao papel de intimidação ou de repressão, mas adquiriu características de verdadeira agressão: espancamentos brutais e indiscriminados, grande número de feridos, dezenas de prisões. Dessa agressão foram vítimas muitos trabalhadores, assim como estudantes e outras pessoas que se limitavam a passar pelo local».

O cenário repetia-se todos os anos, cada vez com maior repressão, porque se reforçava a resistência e a reacção dos portugueses a condições políticas e sociais absolutamente insuportáveis e a uma interminável guerra colonial. Eram muitas as movimentações de trabalhadores, habitualmente concretizadas em greves (totalmente proibidas e reprimidas, como é óbvio). Em Abril e Maio, há que referir, as de empresas como: CUF, Mague, Cel-Cat, Cabos d'Ávila, bancários, etc., etc.



Entretanto, no fim da década de 60 e nos primeiros anos da de 70, tinham surgido novas formas de luta com organizações como a LUAR, a ARA e as Brigadas Revolucionárias.


Na madrugada desse 1º de Maio de 1973, as Brigadas Revolucionários fizeram explodir engenhos que destruíram dois pisos do Ministério das Corporações, na Praça de Londres em Lisboa. Na véspera, tinham distribuído panfletos convocando para as manifestações do 1º de Maio, em cerca de 200 localidades, através do rebentamento de petardos.

Durante a tarde, foram recebidos telefonemas com falsos alertas de bomba em várias empresas de Lisboa. Veio a saber-se depois que o objectivo da iniciativa era «libertar» mais cedo os trabalhadores para que pudessem participar na manifestação. Lembro-me perfeitamente deste facto porque uma dessas empresas foi a IBM, onde eu trabalhava. E lá fomos alguns (poucos...) para o Rossio.




Um ano depois foi a festa. Inesquecível. Quase irreal.

29.4.07

«Ufanosos do nosso ideal»

Sempre tive um fascínio por hinos. Não chega para que me dedique à hinologia, mas a verdade é que me intrigam. Guardo na memória uns tantos – sabe-se lá como e porquê –, que sei de cor há muitos anos. (Será por isso que escolhi para título do meu livro um verso do hino nacional? É bem possível...)

Antigamente, ensinavam-nos muitos. Já nem falo dos religiosos propriamente ditos, mas dos da pátria, das escolas, das organizações.

O que me impressiona é que os hinos se entranham de tal maneira em quem os interpreta que conseguem fazer esquecer o conteúdo. Quem canta um fado, pensa no que está a dizer – não quem canta um hino. Os hinos desempenham um papel puramente simbólico que oculta todos os possíveis despautérios escondidos na letra. Dizem-se, convictamente, palavras estranhas e absolutamente desconhecidas. Quando oiço os garbosos jogadores da selecção nacional de futebol, perfilados antes dos jogos internacionais, pergunto-me se algum deles já parou para tentar saber o que são «egrégios avós»...

Vem tudo isto a propósito de um mail que o Abílio Tavares Cardoso me enviou ontem, com a pérola abaixo transcrita. Parece que isto foi cantado, pelo menos, até 1960...



Hino do Seminário de Santarém

Mocidade a vibrar generosa
Nós a vimos a Cristo ofertar
E seremos a luz radiosa
Para a senda do bem apontar

Prometemos p’la nossa bandeira
Evitar o que ao mundo seduz
E espalhar pela Pátria inteira
A doutrina pregada na Cruz

Refrão

Ufanosos do nosso ideal
Eia avante por Deus com ardor
E faremos surgir Portugal
P’ra uma aurora de paz e de amor