14.12.07

Irene Pimentel – Prémio Pessoa 2007

Hoje, sim, senti orgulho por viver neste país. Porque um júri como o do Prémio Pessoa decidiu atribuí-lo a Irene Pimentel. Porque escolheu alguém que se tem dedicado a estudar, objectiva mas comprometidamente, as manchas negras da história do nosso século XX, ajudando assim a preservar a memória dos que não se resignaram a aceitá-las.

Da historiadora, muitos já falaram, muitos mais falarão nos próximos dias.

Da pessoa, quem a conhece conta sempre com uma presença especialmente calorosa e com uma desarmante simplicidade.

Por razões várias, temo-nos encontrado e cruzado muitas vezes nos últimos meses. Privilégio para mim. Porque a considero, eu também, «minha amiga e companheira de ideais» – como ela me disse (me escreveu) há dois dias.

Goodnight, Irene e parabéns.

13.12.07

«Mocidade, Luta e Canta!»

PRÉMIO PESSOA 2007
PARA IRENE PIMENTEL

(14/12/2007, 12:15)


ACTUALIZADO (**)


Foi ontem lançado mais um livro de Irene Pimentel: «Mocidade Portuguesa Feminina» (*).

É um belíssimo álbum que, para além do texto, contém muitas dezenas de fotografias da época, de pessoas e de páginas de revistas da organização – um riquíssimo conjunto de documentos que falam por si, mais um importante contributo da autora para a memória do século XX português.

A obra percorre e caracteriza detalhadamente a história desta instituição, desde a sua fundação, em 1937, até à extinção oficial já depois do 25 de Abril.

Há na capa uma frase que funciona como uma espécie de subtítulo – «Educada para ser boa esposa, boa mãe, católica e obediente» – e que nos revela o mais importante do que vamos ler e ver: o retrato da mulher portuguesa moldada por décadas de uma ditadura, através de uma instituição com características próprias – diferente das suas congéneres europeias em muitos aspectos, nomeadamente pelo facto de ter uma organização autónoma e independente do ramo masculino, o que provocou por vezes conflitos, mas também algumas vantagens. Lá chegarei.

É impossível resumir o que já li e vou reler, parando nas imagens com textos extraordinários que parecem chegar-nos de uma outra galáxia. Mas não: vêm desta e são «de ontem». Retratam realidades que se passaram, ao vivo e a cores, no próprio edifício onde teve lugar o lançamento do livro – o Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, de que era reitora Maria Guardiola, também comissária nacional da MPF, desde a sua fundação e até 1968. Aquelas paredes, que tanto ouviram, ainda «falam».

Preparavam-se boas esposas e boas mães evocando heroínas femininas: D.Leonor, D.Filipa de Lencastre, D.Maria e, obviamente, a Virgem Maria – que chegou mesmo a ser eleita «dirigente máxima da Mocidade Portuguesa Feminina».

Fomentava-se a acção social e caritativa das associadas, promovendo, por exemplo, campanhas de dádivas de enxovais e de berços. Mas lembrava-se que estes, porque «se destinam a pobrezinhos, não devem ser forrados com tecidos ricos».

Houve controvérsias em torno da promoção do desporto e da educação física porque, para certos sectores da Igreja e do Estado, eles masculinizavam as raparigas e constituíam uma arma do comunismo e do feminismo.

Os conselhos para as férias e os perigos a evitar são inenarráveis.

Etc., etc., etc. Voltarei talvez, noutros posts, com alguns temas específicos.

Só mais uma observação que me parece importante. O facto de a MPF ser independente do ramo masculino acabou por ter como consequência a formação de uma elite de dirigentes quase profissionalizada, que tirou partido da experiência adquirida para mais tarde actuar em palcos e linhas de orientações bem diferentes. Há no livro vários exemplos e testemunhos. Deixo aqui apenas um caso, bem significativo: Mª de Lourdes Pintassilgo declarou que ficou a dever à MPF o «clima de entusiasmo e de generosidade, de gosto pelos grandes ideais e de pronto espírito de serviço», bem como a certeza «de uma vocação própria da Mulher no mundo».

De como o feitiço se vira, às vezes, contra o feiticeiro.

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(*) Irene Flunser Pimentel, Mocidade Portuguesa Feminina, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2007, 240 p.

(**) Indispensável ver este slide show, recebido agora por mail. Obrigada, X.

12.12.07

A «vida política» de Sócrates

Será notícia em todos os telejornais que hoje, em Estrasburgo, durante a cerimónia de proclamação solene da Carta dos Direitos Fundamentais dos Cidadãos Europeus, Sócrates foi interrompido por eurodeputados do Grupo de Esquerda Unitária, que exigiam a realização de referendos para ratificar o Tratado Reformador.

Mas talvez escape que ele classificou a cerimónia «como "a mais importante" da sua vida política».

Se estivesse no seu lugar, teria vergonha, pudor, eu sei lá o quê, que me impediriam de dizer uma frase fatal como esta.

A quem é que interessa a sua vida política senão a ele próprio, provavelmente aos pais, talvez aos filhos, certamente que não ao cão?

Parece irrelevante mas não é. Cada um corre pelas suas causas e acaba por se trair ao virar da esquina.

Fonte.

MalTratado


Para a imagem dos actuais líderes europeus, começa agora um jogo de «perde-perde»:

- Se não convocarem referendos, serão acusados de desrespeitar compromissos anteriores – invocando diferenças entre documentos, que não passam de maquilhagens grosseiras e apressadas.
- Se convocarem, apresentarão aos seus cidadãos um texto inenarrável, cifrado, quase ilegível, impróprio para ser referendado – e correm ainda o risco de o ver rejeitado.

Assim o quiseram.


Terá Portugal o seu referendo?

Parece que Cavaco não quer. Tendo a acreditar.

Não se sabe o que Sócrates pensa, mas tenho para mim que é capaz de achar que lhe dava jeito:
- Porque nos mantinha entretidos durante umas semanas.
- Porque teria certamente consigo, na campanha pelo Sim, Paulo Portas, Luís Filipe Menezes, Santana Lopes e quase toda a comunicação social.
- Porque deve pensar que o PC, o BE, alguns opinion makers e muitos irrequietos da blogosfera não chegariam para estragar a festa, mesmo que defendessem o Não.

Poderia imaginar-se, de passadeira em passadeira, até à vitória final – porque a abstenção ganharia mas o Sim também.

Ou talvez não...

11.12.07

Foi-se a Cimeira, vem aí o Tratado

(*)


Recomendo a leitura de um artigo de Bernard Cassen, publicado na edição portuguesa de Le Monde Diplomatique de Dezembro de 2007 (p. 5):

«Ressurreição da “Constituição” Europeia»

Alguns excertos:

«A Europa e a participação popular nunca se deram bem. Optando pela ratificação parlamentar de um tratado praticamente idêntico ao que foi rejeitado pelos referendos de 2005, alarga-se a fractura entre os cidadãos e o aparelho institucional da União Europeia. Um aparelho que produz constantemente políticas neoliberais, que os governos imputam alegremente a uma “Europa” cuja legitimidade eles próprios se preparam para minar.»

«Se a construção europeia só pode “avançar” à revelia dos povos – quando não é contra eles –, são os seus próprios fundamentos democráticos, constantemente invocados por todos os tratados, que estão em causa.»

«Se esta Europa é efectivamente e por natureza liberal, e se para continuar a sê-lo aferrolhou a sete chaves as suas instituições, a questão, durante muito tempo tabu, consiste agora em saber como havemos de libertar-nos desta canga.»

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(*) Título do Tratado: tão ilegível em Webdings como em Arial.


9.12.07

Doris Lessing – O Sonho e o Nobel


Acabei de ler O Sonho mais Doce (*) no dia em que Doris Lessing deveria ter ido a Estocolmo para proferir o seu discurso de aceitação do Nobel da Literatura, o que não aconteceu por motivos de saúde. Mas deixou-nos um belíssimo texto que alguém leu por ela (**).

Falou de livros, do sonho de saber nos países pobres, da falta de interesse da juventude no mundo dos ricos.

Falou sobretudo de África, do Zimbabwe que ela tão bem conhece – a Zimlia de O Sonho mais Doce, onde nos faz mergulhar, em termos ficcionais, no que neste discurso explica frontalmente.

Em Estocolmo, recordou uma «aldeia onde a população não comia há três dias, mas onde se falava de livros e dos meios para conseguir obtê-los». Um autor negro, seu amigo, que «aprendeu a ler sozinho, nas etiquetas dos frascos de compota e das latas de conservas de frutos». Uma localidade perdida no mapa, onde dois jovens resolveram escrever romances na língua nativa (tonga). Um jovem de dezoito anos que, ao receber uma caixa com livros oferecidos por um americano, os embrulhou cuidadosamente num plástico – com receio de que se estragassem e sabendo que dificilmente poderia voltar a receber outros.

Lamentou que nós, os «ricos», sejamos «blasés», apesar da televisão, da internet e de tudo o resto, «empanturrados de comida, com armários cheios de roupa e abafados pelo supérfluo». «Campeões da ironia e do cinismo».

Significativamente, intitulou o seu discurso: «Como não ganhar um prémio Nobel»«a escrita e os escritores não saem de casas onde não há livros».

Uma grande senhora, um grande livro, um belo discurso – um grito de revolta e um olhar magoado sobre uma África diferente da que nos tem entrado pela casa dentro nos últimos dias.

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(*) Doris Lessing, O Sonho mais Doce, Editorial Presença, Lisboa, 2007, 2ª ed. 434 p.

(**) Na íntegra: em inglês, aqui; em francês, aqui.