25.2.10

A morte dos sonhos




Pela leitura de um texto de Manuel António Pina, no JN de hoje (*), regresso a Cuba e ao que tem sido escrito – ou não – depois da morte de Orlando Zapata Tamayo.

Eu que resisti ao fascínio da Praça Vermelha e da Cidade Proibida, fui apanhada em cheio pela esperança dos amanhãs que cantariam a partir de latinos como nós, que tentavam concretizar um impossível sonho em território americano. Sou, sem dúvida, da geração do tal «cubanismo de uma zona da esquerda ocidental», extraordinariamente bem retratada em Fantasia Vermelha, de Iván de la Nuez.

Não sei se todos os sonhos são feitos de chumbo, mas a vida vai-se encarregando de nos fazer sentir na pele, desde a infância, que há uns tantos que pesam muito. É mesmo a compreensão desta realidade que nos torna saudavelmente adultos, se soubermos fazer o luto do que acabou para não voltar: uma pessoa, um amor, uma religião, uma ideologia.

O luto pelo fim do sonho cubano doeu-me, mas terminou há muito tempo. Volto a ele como à recordação de uma pessoa próxima que morreu: sempre sem indiferença, mas já não sentindo realmente a necessidade da sua existência, nem a incapacidade de identificar defeitos – de consequências terríveis e dramáticas, no caso vertente.

Quero acreditar que é a falta desse luto que fez com que tantos, a nível individual, se tenham calado, ou falado ligeira e envergonhadamente, nos dois últimos dias. Cuba continua a ser um tema incómodo, ainda há uma T-shirt de Che escondida por baixo de muitas novas camisolas: resume-se um take da Lusa, põe-se um videozito com as palavras da mãe de Zapata - e passa-se para outra.

A nível colectivo, mais concretamente partidário (porque a tal mítica sociedade civil, essa, está preocupada com o Everton…), a questão é ou parece ser outra: por crença ou por tacticismo, o silêncio da chamada esquerda foi mais pesado do que sonhos de chumbo. Se nada há a esperar do PCP por razões óbvias e se, no Largo do Rato, devem andar todos à procura de gravadores de escutas sem tempo para outras tarefas, já destes senhores, a quem dei o meu voto, espero mais do que notícias dos acontecimentos, mesmo que detalhadas: há uma embaixada de Cuba em Lisboa, que espera por uma manifestação, há uma AR onde pode ser apresentado um voto de protesto, há a Amnistia Internacional que deve ser apoiada na exigência de que sejam libertos todos os outros presos políticos cubanos. Há mil outras possibilidades, como houve para Aminatu Haidar.

Ou ficamos à espera que morra o próximo?

(*) «Nos anos 60, quando o pesadelo soviético era mais que evidente, a Revolução Cubana iluminou de súbito o nosso sonho de uma sociedade livre e igualitária, e tanto desejámos esse sonho que aceitámos qualquer desculpa para as suas traições. Acordámos dele a custo para descobrir, como Sam Spade em "O falcão de Malta", de Dashiell Hammett, que é chumbo a matéria de que são feitos os sonhos.»

11 comments:

Miguel Serras Pereira disse...

Apoiado, Joana.
Muito bem.
Abç

miguel

Anónimo disse...

Acho errada esta sua manifestação, não pelo conteúdo, mas pela hora em que nos é dada. Acho muito bem que se proteste contra a ditadura cubana, mas há que fazê-lo pura e simplesmente pela falta de liberdade de expressão. Cada vez que há um preso político, deve haver manifestações e das grandes. Não há nada mais errado do que sucumbir à mediatização deste evento. Repare-se que não passa de uma greve de fome. Existe um anarquista português de que agora não me recordo o nome, que está preso há mais de 20 anos. Esteve em greve de fome e não houve uma única notícia num desses jornais asquerosos que minam o dia-a-dia da nossa liberdade de imprensa. Se tivesse morrido em greve de fome deveríamos condenar o Governo Português?

A Revolução cubana morreu há muito, estrangulada sobretudo por forças externas. Para um país que produzia açúcar, fizeram muito. Mas quando a Joana ainda acreditava na revolução cubana quantos opositores de esquerda, dentro de Cuba, não terão sido silenciados?

xatoo disse...

o Everton? o próximo? ora, ora, é mais que certo que o Sporting já está morto...
(lol, no hard feelings)

Joana Lopes disse...

Obrigada, Miguel.

Aprecio o seu sentido de humor,
xatoo.

Quanto ao Anónimo, fia mais fino e não sei se entendi totalmente. Primeiro, tem toda a razão ao dizer que a ditadura é condenável pela simples falta de liberdade de expressão, mas na sociedade mediatizada em que vivemos, é normal que se reaja contra um todo quando um acontecimento mais chocantes e evidencia - neste caso, uma morte.
Segundo, eu nunca disse que só agora foram silenciados opositores.
Terceiro, condeno absolutamente o bloqueio norte-americano.

septuagenário disse...

Acertados estavam aqueles que sempre cortavam a bara todos os dias.

Alguns até ficavam horriveis com a barba de 6 meses, mas eram teimosos!

Tanto barbeiro que faliu!

António P. disse...

De acordo , Joana.
Já há muito que espero que alguém convoque manifestações para a frente de certas embaixadas ( Cuba, Irão, etc ).
Fico à espera.
Cumprimentos

Joana Lopes disse...

Obrigada, António, gosto quando estamos de acordo. :-)

António P. disse...

Eu também, Joana.
Mas dá-me mais gozo :)) o desacordo /diferença...provoca o debate e faz nascer novas pistas para os problemas.
Cumprimentos

jpt disse...

Acho interessantíssima a petição que publicitou via fb (e que me trouxe aqui). O texto (há quem goste de lhe chamar sub-texto) é rico: 1º "nós condenamos o bloqueio americano"; 2º nós condenamos esta situação.

Riquissimo. Para que se fale das características e das práticas do regime comunista cubano há que as matizar (ou, e é mesmo isso do que se trata embora os autores o venham negar de quando em vez) lhes atribuir a causalidade: o "mal americano". Como se os regimes irmãos da ditadura castristas não tivessem tido as mesmas características, as mesmas práticas ... É um óbvio artifício, mas enfim.

Estas hierarquias (causais, insisto) são interessantes. A JL tem aqui um comentário ("Anónimo" #2) que lhe pergunta, e em tom de culpabilização a Havana (e algo crítico a si), "quantos opositores de esquerda, dentro de Cuba, não terão sido silenciados". Que se "silenciassem" (daquelas maneiras que se conhecem há décadas) os "opositores" de direita vá lá, agora de esquerda...?!

Em 2010. Seria inacreditável se não fosse todos os dias a mesma lenga-lenga.

(o Sporting não morreu, já agora)

Joana Lopes disse...

jpt,

Começando pelo comentário do Anónimo que refere: como terá reparado, disse-lhe em resposta que não sabia se o tinha entendido correctamente porque não sei em que opositores «de esquerda» ele está a pensar.

Quanto ao conteúdo da petição: para mim, o bloqueio americano não branqueia a ditadura cubana, mas é totalmente inaceitável e absurdo.

jpt disse...

JL comentei aqui pois o post da petição não estava afixado, só agora o vejo ...

O meu comentário ao comentário é apenas isso, nada a ver consigo.

Quanto ao texto da petição: o bloqueio americano é "inaceitável e absurdo"? Ok. E depois? Para fazer uma crítica, para refutar as características estruturalmente repressoras do regime cubano é preciso falar dele porquê? V. compreende exactamente o meu ponto - o apelo ao bloqueio num momento destes, num documento destes, tem uma função. E compreende-se bem. Implicita causalidades, matiza responsabilidades. Nao me repito. É um raciocínio, um discurso, uma maneira de ver tudo característica.