20.5.10

Enquanto a Europa dormiu a sesta


Exactamente há um ano, em Maio de 2009, eu estava no Cambodja e foi lá que li um post que Rui Bebiano então publicou em «A Terceira Noite», sobre o direito à sesta, em vias de reconhecimento no reino da Dinamarca. Falava-se também de um dia de baixa por morte de um animal doméstico. Em jeito de adenda, o Rui publicou a minha reacção que lhe enviei por mail: «Será possível, viável, um mundo em que se possa dormir a sesta sem que outros (aqui) trabalhem 364 dias por ano, nem se sabe quantas horas por dia? E em que os primeiros ainda se queixam se as empresas são deslocalizadas para dar de comer aos segundos?». Lembrei-me disto ao ler hoje este outro texto, também do Rui.

Nesse dia eu tinha andado por Tonlé Sap, o maior lago de água doce do Sudoeste Asiático, onde vivem milhares de pessoas numa situação quase inimaginável. Em barracas, sobre estacas ou flutuantes, acumulavam-se famílias cheias de filhos e até de animais, sem quaisquer condições de higiene, com esperança de vida abaixo dos cinquenta anos. Como então escrevi, «vi pessoas beberem a água do lago (e é com ela que se cozinha e que se toma banho), (…) e um pequeno curral flutuante com quatro porcos, amarrado a um dos lados de uma casa. Saltavam crianças, mais ou menos esfarrapadas, de tudo o que era buraco. Devo dizer que estas imagens ficarão entre as piores que guardo das muitas viagens que já fiz. (…) Do Cambodja, vim com a sensação de que a revolta nascerá naquele lago.»

Naquele lago e não só. O Cambodja é um país terrível, paupérrimo e quase sem velhos, já que 20 a 25% da população desapareceu em consequência da acção dos Khmers Vermelhos, em apenas quatro anos – enquanto nós por cá vivíamos o PREC e os anos que se seguiram, ou seja há relativamente pouco tempo.

Se falo deste caso, é porque ele é quase um extremo. Mas a Birmânia, o Laos e até o Vietname, mesmo a Índia que não é dos ricos, não ficam muito atrás: multidões e multidões, com taxas de crescimento de população elevadíssimas, milhões e milhões de crianças e jovens que, até há pouco, olhavam para Oeste com um El Dorado a ser imitado, ou que um dia viriam a alcançar - mesmo se, nalguns casos, através do enviesado modelo do grande vizinho chinês.

Mas, nos últimos doze meses, tudo se alterou no mundo, muito mais do que alguma vez poderíamos ter imaginado. Há um ano, claro que já havia «a crise», mas ainda nos entretínhamos a discutir o cumprimento da lei do fumo e as características dos galheteiros, regulamentados pelo camarada Barroso and friends. Hoje, já nem da ASAE se ouve falar – só da dita crise e dos seus protagonistas.

Mudou tudo, mas infelizmente no pior sentido. Não porque pense que vamos todos acabar em enormes lagos Tonlé Sap deste lado do planeta, nem porque já ninguém ouse, sequer, reivindicar sestas ou feriados adicionais pela morte de um gato. Mas porque a pobreza aí está, nua e crua, onde e quando menos se esperava. Não acreditámos que o capitalismo selvagem nos venceria com o seu falhanço, mas foi o que aconteceu. Vivamos então em estado de alerta porque o mundo não acaba aqui. Mas precisa, mais do que nunca, daqueles que procuram outros modelos e razões para novas esperanças.

(Publicado também aqui)
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