16.6.10

«Cinzas de Verão»


O blogue do Centro Nacional de Cultura publicou hoje mais uma crónica de João Bénard da Costa. Sobre calendários, férias, o Verão numa das suas grandes paixões: a Arrábida.

Trago-a para aqui não só pelo texto em si, mas porque o mesmo me fez recuar a meses de Agosto únicos, passados com a família Bénard da Costa. Não na Villa Raul, de que o João fala, mas muito perto, já com a novíssima ponte sobre o Tejo e alguns automóveis em segunda mão a facilitarem a viagem,  com péssimas estradas, ainda sem electricidade, sem lojas, apenas com os longos dias no Creiro, para onde se ia a pé ou no barco do Salmonete, as intermináveis conversas noite fora à luz da vela, com o mar de Alpertuche de um lado e o Convento incrustado na Serra do outro, a festa pela chegada do primeiro gira-discos a pilhas, vindo da América, os dramas de amores e desamores em plenos anos 60.

A morte nalguns casos, as vidas nos outros, espalharam-nos por aí e já raramente nos encontramos. Mas a Arrábida, essa, ficou para sempre colada à pele.


1 - 1 de Outubro. Para mim, os anos começam sempre a 1 de Outubro. 1 de Janeiro é só o menos estimulante dos dias da quadra do Natal, uma espécie de cinzento P.S. (vale para "post-scriptum") do Dia do Menino Jesus.
Aos mais novos recordo que, nos meus tempos, era a 1 de Outubro que recomeçavam as aulas, após as férias que nos anos sem exame (e dos sete do liceu, quatro eram anos desses) se espraiavam docemente entre 14 de Junho e 30 de Setembro, dia dos anos da minha avó. Para mim, espraiavam-se literalmente entre 1 de Agosto e 28 ou 29 de Setembro. 1 de Agosto era o dia da viagem, entendendo-se por viagem o percurso entre o nº 86 da Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa, e a Villa Raul na Arrábida. Os quilómetros (46) não encolheram com o tempo, mas sem pontes sobre o Tejo (travessia em "ferry-boat"), camioneta de Cacilhas para Azeitão e mais camioneta de Azeitão para a Arrábida, o percurso era coisa para quatro, cinco horas a que se somavam as horas de espera pelas mencionadas carripanas, exclusivo de João Cândido Bello. Cedo erguer em Lisboa e pôr-do-sol na Arrábida, onde, felizmente, havíamos sido precedidos pelas criadas, que já tinham posto a casa mais ou menos em condições. Tudo era diferente, nos rituais do quotidiano. Não havia luz eléctrica, a água provinha de uma cisterna e era levada em jarros para os quartos e respectivos lavatórios. Não havia telefonias nem telefones, não havia cinemas nem lojas. Havia a praia e os banhos, os passeios na serra. Um silêncio total. Regressar a Lisboa era passar do século XIX ao século XX. A surpresa de carregar num interruptor e fazer-se luz, da água a jorros, do telefone a tocar. À noite, na cama, eu ouvia os silvos dos comboios de Entrecampos e não mais a nortada a fazer ranger as madeiras das portas e dos tectos. Um ano acabara, começava outro, ao reencontrar (ou perder) colegas e professores nos pátios e nas aulas do Liceu Camões. Nunca mais via os primos e as meninas do Verão. Até outro Verão. Mas não o Verão, como eu não o via, com os mesmos olhos. O tempo ainda não passava a correr e um ano na adolescência é maior do que a légua da Póvoa. Nesse tempo, é que a vida eram literalmente dois dias: os dias do Inverno e os dias do Verão. As coisas então mais importantes para mim também se contavam a dois: os dias do campeonato de futebol e os dias sem campeonato, começou a época, acabou a época. Havia, no defeso, alguns sucedâneos (a Volta em Portugal em bicicleta, por exemplo), mas não era nada a mesma coisa. As temporadas dos cinemas: os grandes filmes chegavam em Outubro e desfilavam até Junho-Julho, quando começam as "reprises". No Verão, muitos cinemas fechavam enquanto os anúncios anunciavam: "Temporada de 1949-50". Havia os amores de Verão e os desamores do Inverno, e só mais tarde começou a ser vice-versa. Havia os pecados de Lisboa e os pecados da Mata Coberta. Havia as missas em capelas de casas ou grutas particulares e havia as missas de S. Sebastião da Pedreira ou do Patronato. Havia um eu de Inverno e um eu de Verão. Como é que eu posso dizer que o ano não começa a 1 de Outubro?

Continua aqui.
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