6.11.10

Para reflexão, com Hu Jintao entre nós


Vale a pena ler esta crónica de Pedro Lomba, publicada no Público de 4 de Novembro (sem link):

Quem somos nós
Dentro de dias chega a Portugal o Presidente da China. Visita inédita, anunciada com um elogio em "diplomatiquês" às "relações bilaterais Portugal-China frutíferas em todos os domínios". Antevemos que a visita será lacrada com dúzia e meia de acordos de cooperação. Mas não é por aí que o tema ferve. Não existem viagens de Estado gratuitas e muito menos para a China. Tudo é business.

Se estiveram atentos aos saldos de Outono, repararam que a China tem andado num périplo frenético pelas economias mais endividadas da Europa. Irlanda, Itália e, há já algum tempo, Grécia. Este interesse nem sequer é recente, mas a aflição dos últimos tempos, sobretudo em Portugal e Grécia, subiu os descontos. Repararam que a China tem prometido comprar mais dívida pública grega. Agora somos nós a estar na berlinda, pois a China manifestou interesse em comprar dívida portuguesa. "Temos vontade em participar nos esforços dos países europeus para recuperar da crise", disse a responsável chinesa para as relações com a Europa.

Agradeçam mas desconfiem. Para nós, vender dívida é opção irrecusável. Haja quem nos compre e de permeio nos financie. Para a China, que tem o armazém cheio de reservas, comprar dívida soberana dos Estados doentes da Europa "ainda" significa arrecadar "risco euro". O casamento parece perfeito. Mas para os chineses tudo isto implica certamente outras consequências políticas.


As guerras do passado cruzavam exércitos, artilharia, batalhas convencionais. As de hoje são mais sofisticadas. São guerras monetárias. Em primeiro lugar, a entrada da China na periferia escaldada do euro, cada vez mais deixada à sua sorte, tem como propósito valorizar a moeda europeia face ao dólar, sustendo a pressão para que a China valorize a sua moeda. Há algum tempo que a China anda a travar um conflito cambial contra os Estados Unidos. Interessa-lhe manter o yuan fraco porque, como se sabe, esse tem sido o grande motor do desenvolvimento chinês da última década, contrariando aquele ensinamento clássico de que só pode existir prosperidade com uma moeda forte.

Depois, seria idílico pretender que a compra de dívida soberana de Irlanda, Itália, Grécia e Portugal consiste apenas e só em compra de dívida. Não há ofertas. Lemos depois notícias como estas, saídas nos últimos dias: "Portugal apoia fim do embargo europeu à venda de armas à China" (em vigor desde 1989) "Portugal apoia a concessão do estatuto de economia de mercado" à China. E não estamos sozinhos. Grécia, Espanha e outros países também defendem o levantamento do embargo, que terá sempre de ser decidido por toda a Europa. Já agora: os Estados Unidos estão contra o levantamento do embargo.

Tudo é business, de facto. O problema aqui não é Portugal que pouco conta. Não interessa se os nossos santos princípios são agredidos pelo levantamento do embargo ao comércio de armas e pela aceitação da economia chinesa como uma economia de mercado, mesmo sabendo que os direitos de propriedade intelectual ou normas de concorrência leal são por lá letra morta. Quem não tem dinheiro, é forçado a meter os princípios na gaveta.

Mas já não é assim com a Europa que, ao fazer certas cedências políticas ao regime chinês em troca de um generoso empurrãozinho na sua moeda, está na prática a cavar uma nova dependência e resignação. Pelo caminho devíamos talvez pensar nos efeitos desta dependência. A economia, ou mais precisamente, este "financeirismo" que se define pelo supremo objectivo de conservar a força do euro, vão a caminho de transformar a Europa num continente sem identidade política. Já não basta que a solidariedade interna esteja em vias de extinção, por razões conhecidas. Até mesmo para fora, a Europa arrisca-se a ficar um espaço despolitizado, sem uma noção clara de quem somos "nós" e de quem são os "outros". Quem e o que somos nós? Ninguém sabe.
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