16.4.11

Documento dos 57


@Gui Castro Felga

Foi divulgado hoje um texto que, embora sem o referir, é uma clara «resposta» a um outro subscrito por 47 VIPs, publicado no jornal Expresso exactamente há uma semana. «Curiosamente», a edição de hoje deste mesmo jornal relega para uma notícia quase de pé de página a existência do novo documento, sem divulgar o seu conteúdo e referindo apenas uma parte dos subscritores: prefere dar, na mesma página, um grande relevo a novos nomes que se juntaram à lista de adesões ao primeiro.

Convergência nacional em torno do emprego e da coesão social

Num momento dramático como o que vivemos, a sociedade portuguesa precisa de debate e de convergências democráticas. Precisa também de reconhecer que a crise do liberalismo económico, de que a acção dos programas patrocinados pelo FMI tem sido uma expressão, obriga a reavaliar opiniões e prioridades e a construir soluções novas, assentes em ideias e escolhas claras e num programa explícito, sabendo que na democracia nunca há a inevitabilidade de uma escolha única, porque a democracia procura as melhores soluções da forma mais exigente.

É indiscutível que o estado das finanças públicas, que é em grande medida o resultado da profunda crise económica, exige um conhecimento e avaliação exigentes de todos os compromissos públicos. E que se torna urgente identificar a despesa pública desnecessária, supérflua e geradora de injustiças sociais, distinguindo-a da que é indispensável, colmata problemas sociais graves e qualifica o país. É também útil que se reconheça a importância do trabalho, dos salários e dos apoios sociais na sociedade portuguesa, se admita a presença de carências profundas, sob a forma de pobreza e de desigualdades crescentes, e se considere que os progressos alcançados na nossa sociedade são o resultado da presença de mecanismos de negociação colectiva e de solidariedade cujo desmantelamento pode significar uma regressão socioeconómica que debilitará o país por muito tempo.

Qualquer solução para os nossos problemas tem de partir de uma constatação realista: até agora as intervenções externas foram a expressão de uma União Europeia incapaz de perceber que a alternativa à solidariedade, traduzida em cooperação económica e integração sem condicionalidade recessiva, é o enfraquecimento das periferias sob pressão da especulação e de cúmplices agências de notação. A zona euro paga o preço de não ter mecanismos decentes para travar a especulação em torno da dívida soberana e para promover políticas de investimento produtivo que permitam superar a crise. As periferias pagam o preço da sua desunião política, única forma de colocar o centro europeu, principal responsável por este arranjo, perante as suas responsabilidades.

No momento em que se vão iniciar negociações entre o Governo e a troika FMI-BCE-CE, sabe-se que a austeridade provoca recessão económica e gera fracturas profundas, de que o desemprego elevado é a melhor expressão. As experiências grega e irlandesa exigem uma revisão das condições associadas aos mecanismos de financiamento em vigor. De facto, devido à austeridade intensa dos últimos dois anos, a economia irlandesa contraiu-se mais de 11% e a recessão grega atingiu 6,5% só entre o último trimestre de 2009 e o último de 2010. O desemprego ultrapassa já os 13% nestes dois países. A este ritmo, e apesar dos cortes orçamentais intensos, nenhum deles conseguirá reduzir a sua dívida. Isso só acontecerá com crescimento económico e com uma noção clara de que não é nos salários e no trabalho, mas antes na escassa inovação e na fraqueza organizacional de grande parte das empresas portuguesas, que residem os problemas de competitividade. Portugal não pode ser um laboratório para repetir as mesmas experiências fracassadas, e corremos o risco de uma recessão ainda mais prolongada, se tomarmos em consideração as previsões do próprio FMI.


Por tudo isto, considera-se necessário um apelo a um compromisso sob a forma de um programa de salvaguarda da coesão social em Portugal, de manutenção e reforço das capacidades produtivas do país para gerar emprego, com atenção às pessoas, evitando sacrifícios desnecessários. Os pontos essenciais de tal compromisso são os seguintes:

1. Garantir que em todas as decisões económicas e financeiras se coloca o objectivo de promoção exigente do crescimento e do emprego, reconhecendo que a sociedade portuguesa não comporta níveis de desemprego que outras sociedades registam, dada a fragilidade da estrutura de rendimentos e a insuficiência dos mecanismos de protecção social. A presença, já sugerida, da OIT nas negociações entre o Governo e a troika FMI-BCE-CE seria um sinal construtivo muito importante, colocando a questão do trabalho digno.

2. Desencadear um escrutínio rigoroso da despesa pública, auditando a dívida do país, sobretudo a externa, identificando com rigor as necessidades reais e os desperdícios da administração pública e salientando a necessidade de concentrar os recursos na esfera essencial das políticas públicas que combatem a exclusão social e a desigualdade, qualificam as pessoas e promovem a actividade produtiva, a competitividade e o crescimento da economia.

3. Afirmar que a educação, a saúde e a segurança social, bem como outros bens públicos essenciais como os correios, não podem ser objecto de privatização, fazendo da lógica lucrativa um mecanismo de regulação nestes domínios, visto que tal solução seria cara e insustentável financeiramente, levaria à exclusão de muitos e generalizaria injustiças sociais e regionais.

4. Recusar qualquer diminuição do papel do Estado no sector financeiro, sublinhando que a Caixa Geral de Depósitos deve permanecer integralmente pública e com uma missão renovada e que a regulação do sector terá mesmo de ser reforçada para evitar novos abusos. Os signatários entendem que um compromisso deste tipo viabiliza as acções necessárias ao momento presente, capacita a sociedade para enfrentar positivamente as dificuldades e tem como objectivo tornar claro que, em circunstâncias graves, há direitos associados à dignidade do trabalho, ao respeito pelas pessoas e à garantia da coesão social que não podem ser postos em causa, sob pena de fragilizar gravemente o país e de eliminar qualquer capacidade própria de superar a situação dramática em que nos encontramos.

Albano da Silva Pereira, Fotógrafo, Director do Centro de Artes Visuais de Coimbra;
Alexandre Alves Costa, Arquitecto;
Anália Torres, Socióloga, Professora do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa;
António Arnaut, Advogado;
António Chora, Coordenador da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa;
António Manuel Hespanha, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa;
António Pinho Vargas, Compositor;
António Romão, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa;
Augusto M. Seabra, Crítico de cinema, literatura e música;
Boaventura de Sousa Santos, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra;
Carlos Fortuna, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra;
Cristina Andrade, Activista do FERVE - Fartos/as d'Estes Recibos Verdes;
Daniel Oliveira, Jornalista;
Eduardo Paz Ferreira, Advogado, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;
Elísio Estanque, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra;
Eugénio Fonseca, Presidente da Caritas Portuguesa;
Fernanda Rollo, Historiadora, Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;
Fernando Catroga, Historiador, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra;
Fernando Roque de Oliveira, Economista, Presidente do Observatório sobre a Produção, o Comércio e a Proliferação de Armas Ligeiras;
Helena Roseta, Arquitecta;
Isabel Allegro, Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;
João Abel Freitas, Economista;
João Cravinho, Militante socialista;
João Ferrão, Geógrafo, Investigador do Instituto de Ciência Sociais da Universidade de Lisboa;
João Ferreira de Almeida, Sociólogo, Professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa;
João Ferreira do Amaral, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa;
João Proença, Sindicalista;
João de Deus, Sindicalista;
João Rodrigues, Economista, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra;
Jorge Vala, Psicólogo Social, Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa;
José de Faria Costa, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra;
José Luís Pio Abreu, Médico Psiquiatra;
José Maria Brandão de Brito, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa;
José Maria Castro Caldas, Economista, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra;
José Reis, Economista, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra;
Luís Moita, Professor da Universidade Autónoma de Lisboa;
Manuel Alegre, Escritor, militante socialista;
Manuel Carlos Silva, Sociólogo, Professor da Universidade do Minho;
Manuel Carvalho da Silva, Sindicalista;
Manuela Silva, Economista, Professora do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa;
Manuel Brandão Alves, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa;
Maria Eduarda Gonçalves, Jurista, Professora do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa;
Mário Murteira, Economista, Professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa;
Mário Ruivo, Biólogo, Oceanógrafo;
Miguel Henriques, Músico;
Octávio Teixeira, Economista;
Paula Gil, Activista da Geração à Rasca;
Paulo Areosa Feio, Geógrafo, IGOT - Universidade de Lisboa;
Pedro Hespanha, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra;
Ricardo Paes Mamede, Economista, Professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa;
Rui Namorado, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra;
Rui Tavares, Historiador e Eurodeputado;
Sandra Monteiro, Directora do Le Monde diplomatique - edição portuguesa;
Sandro Mendonça, Economista, Professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa;
Sérgio Azevedo, Compositor;
Tiago Gillot, Activista dos Precários Inflexíveis;
Vasco Lourenço, Associação 25 de Abril.

Público, 16 Abril 2011
...

12 comments:

Miguel Serras Pereira disse...

Bom, Joana, o texto desiludiu-me bastante, apesar de ser assinado (ou por isso mesmo) por alguns dos meus críticos da economia preferidos (estou a pensar no José M. Castro Caldas, por exemplo). Aliás, os bons propósitos são tão irénicos que não chegam, creio eu, para fazer do documento - e aqui discordo de ti - uma "resposta" e muito menos "clara" ao de "Um compromisso nacional". O facto de haver pelo menos um destacado homo academicus que subscreve com a máxima naturalidade os dois textos conforta a minha leitura.
O que me parece, sim, é que a "resposta" que evocas e seria necessária teria de comportar algumas propostas alternativas, referir a questão europeia, sugerir uns quantos pontos de partida que marcassem a diferença. Infelizmente, ainda não foi desta - talvez para não desagradar aos partidos, talvez para evitar a assunção de posições politicamente definidas, talvez porque "neste país em diminutivo / respeitinho é que é preciso"…
Mas lá que gostaria de poder subscrever o que afirmas de uma tomada de posição que o merecesse, bem sabes que sim.

Abraço

msp

Joana Lopes disse...

Miguel,posso assinar tudo o que dizes. O que presumo - repito: presumo - é que o texto deve corresponder ao denominador comum possível.

Anónimo disse...

há q questionar o boaventura sousa santos q assinou os 2, certo?

shyz

Miguel Serras Pereira disse...

Inteiramente de acordo. Mas esse "denominador comum possível" será minimamente suficiente?

msp

Joana Lopes disse...

Shyz, 100% de acordo quanto ao BSS: fiquei de queixos caídos. Mas ele explica-se tanto que não perderá a oportunidade de o fazer ;-)
Também interessante o caso da Fátima Rollo que assina este texto e se juntou agora ao dos 47...
Gente muuuito maleável...

Joana Lopes disse...

Miguel, suficiente para?

Miguel Serras Pereira disse...

Joana,

suficiente para mudar alguma coisa que faça diferença nas políticas recessivas e antipopulares seguidas até aqui.
Do meu ponto de vista, acrescento de passagem, é mais razoável apostarmos na possibilidade de mudar alguma coisa sem o governo do que na eventualidade de um governo com orientações alternativas no imediato.
O que é já outra discussão -mas não despropositada.

miguel (sp)

Rogério G.V. Pereira disse...

Não liguei à troca de "ideias" nos comentários, e até a podia julgar relevante. Liguei sim ao seu oportuno post e ao facto, por si assinalado, da dualidade de tratamento que o Semanário Expresso deu. Um documento deste tipo tem o seu impacto muito depedente da projecção que os media lhe possa dar... Fraca é a alternativa de o fazer circular na net. Mas tendo, em termos relativos, menos impacto não deixa de ser importante fazê-lo. Por isso irei dar o meu contributo para que o máximo de pessoas o conheça. Farei link, também...

Carlos Araújo Alves disse...

«Garantir que em todas as decisões económicas e financeiras se coloca o objectivo de promoção exigente do crescimento e do emprego, reconhecendo que a sociedade portuguesa não comporta níveis de desemprego que outras sociedades registam, dada a fragilidade da estrutura de rendimentos e a insuficiência dos mecanismos de protecção social.»

Como se concretiza tão elevado objectivo? Com a exportação de tremoço? A exploração das jazidas de petróleo de Freixo de Espada à Cinta?

«Afirmar que a educação, a saúde e a segurança social, bem como outros bens públicos essenciais como os correios, não podem ser objecto de privatização, fazendo da lógica lucrativa um mecanismo de regulação nestes domínios, visto que tal solução seria cara e insustentável financeiramente, levaria à exclusão de muitos e generalizaria injustiças sociais e regionais.»

E como financiará o Estado todos esses serviços públicos? Uma ideia.... UMA ao menos que seja!!!

Ora bolas! Gente boa a subscrever um texto destes sem uma única proposta de acção sustentada e sustentável que consubstancie o que defendem!

Joana Lopes disse...

Caro Carlos Araújo Alves, um dos subscritores do documento publicou-o no blogue em que escreve, aqui. Parece-me um local adequado para colocar as suas questões.

Carlos Araújo Alves disse...

Tem toda a razão, Joana Lopes. Queira desculpar.

Joana Lopes disse...

Não, não é para pedir desculpa, é porque me parece mesmo o mais adequado e não me vou pôr a interpretar propostas não explícitas num documento de outrem.