29.4.12

O nosso «Chicago Boy»



A crónica semanal de Miguel Sousa Tavares, no Expresso de ontem (sem link), é demasiado importante, a meu ver, para que seja lida também por quem não teve oportunidade de comprar o jornal. Ainda há muito quem olhe para o ministro das Finanças como um puro técnico, sem agenda ideológica, o que é um erro e constitui um perigo. 

Alguns excertos que me parecem importantes e o texto na íntegra. 

«O ministro derramava sobre nós o seu ar cansado, o seu olhar de mocho sacrificado pela nação, hesitava, tropeçava nas frases, sussurrava verdades evidentes por si sós e para as quais tínhamos de apurar o ouvido para bem escutar. (…) O mago Gaspar, quem sabe mesmo um Salazar democrático, enviado pela senhora Europa para de novo nos pôr as contas em ordem! Quando pouco mais resta, Portugal tem o costume de acreditar em milagres. 

Dez meses passados, começo a pensar que Vítor Gaspar não é um calmante, mas sim um indutor do sono. Anestesiou-nos, adormeceu-nos, fez connosco o velho truque dos economistas, que é o de retirar o adjectivo‘política’ ao nome da suposta ciência conhecida como Economia Política. Ora, como bem sabemos, a economia é demasiado importante para ser deixada apenas a cargo dos economistas – sobretudo, daqueles que, como Vítor Gaspar, pertencem à escola doutrinária que defendeu as teses que nos mergulharam, à escala mundial, na actual crise. (…) 

Nunca acreditem nos economistas ‘apolíticos’: o seu objectivo final é tão político quanto o dos políticos, apenas querem chegar lá por si sós, invocando uma pretensa superioridade técnica que dispensará o controlo político democrático sobre aquilo que vão fazendo. E as situações de emergência financeira, como a que vivemos, são ocasiões privilegiadas para fingir que se dispensa a política, em nome da urgência e em nome da tal superioridade técnica, que, porém, esconde sempre uma agenda política — entre nós, cada dia mais evidente. (…) 

A agenda política do ‘técnico’ Vítor Gaspar e do Governo de que faz parte é clara como água: vem nos livros e nos manuais e repete-se ciclicamente, de cada vez que os “Chicago boys” querem ajustar contas com o que eles chamam o “socialismo” — isto é, a existência de um Estado que não se limite a ser um simples facilitador de negócios privados.» 

Na íntegra:

O Mago 

Depois de seis anos de gritaria, parlamentar e não só, a voz mansa e monocórdica de Vítor Gaspar caiu sobre nós como um calmante, de que aparentemente estávamos necessitados. Apoiado também na suave voz de barítono de Passos Coelho, Gaspar ensaiou os seus primeiros passos públicos com a atrapalhação da criança que aprende a caminhar. O ministro derramava sobre nós o seu ar cansado, o seu olhar de mocho sacrificado pela nação, hesitava, tropeçava nas frases, sussurrava verdades evidentes por si sós e para as quais tínhamos de apurar o ouvido para bem escutar. O tom era tão inabitual e relaxante que o ministro conseguiu a rara proeza de instalar a paz em seu redor: quando ele falava, fazia-se silêncio para o ouvir e, se metade das vezes não se entendia o sentido da mensagem, o país, num acto colectivo de esperança ou de desespero, acreditava que talvez aquele desconhecido Gaspar, saído do nada que é aquele planeta conhecido como Bruxelas, talvez viesse a fazer jus ao seu nome de rei mago. O mago Gaspar, quem sabe mesmo um Salazar democrático, enviado pela senhora Europa para de novo nos pôr as contas em ordem! Quando pouco mais resta, Portugal tem o costume de acreditar em milagres. 

Dez meses passados, começo a pensar que Vítor Gaspar não é um calmante, mas sim um indutor do sono. Anestesiou-nos, adormeceu-nos, fez connosco o velho truque dos economistas, que é o de retirar o adjectivo‘política’ ao nome da suposta ciência conhecida como Economia Política. Ora, como bem sabemos, a economia é demasiado importante para ser deixada apenas a cargo dos economistas – sobretudo, daqueles que, como Vítor Gaspar, pertencem à escola doutrinária que defendeu as teses que nos mergulharam, à escala mundial, na actual crise (quem viu o “Inside Job” sabe do que estou a falar: nos anos-Bush, então sim, os economistas colocaram-se sem remorsos, ao serviço de uma política de base puramente ideológica que muitos sabiam que só poderia conduzir ao desastre. À prosperidade de alguns interesses económicos e à ruína das nações. A humanidade deve-lhes alguns milhões de postos de trabalho, de empresas, de famílias, para sempre destruídos). 

Nunca acreditem nos economistas ‘apolíticos’: o seu objectivo final é tão político quanto o dos políticos, apenas querem chegar lá por si sós, invocando uma pretensa superioridade técnica que dispensará o controlo político democrático sobre aquilo que vão fazendo. E as situações de emergência financeira, como a que vivemos, são ocasiões privilegiadas para fingir que se dispensa a política, em nome da urgência e em nome da tal superioridade técnica, que, porém, esconde sempre uma agenda política — entre nós, cada dia mais evidente. Oficialmente, trata-se de pôr as contas do Estado em ordem e a isso ninguém de bom-senso e de boa-fé se pode opor. Contudo, esse objectivo consensual não esgota a discussão: é necessário saber como, a que ritmo e, sobretudo, a que preço. Os dados das execuções orçamentais de 2011 e 2012 são suficientemente claros para percebermos que o Governo e a troika falharam todas as previsões relativamente ao como e a que ritmo: jamais voltaremos aos mercados, sem assistência, em 2013. O mesmo se constata em Espanha e em Inglaterra, onde outros governos movidos por idêntica fé liberal estão a conduzir os seus países à recessão e à falta de perspectivas. Em Espanha, o medíocre Rajoy, tendo quebrado quase todas as promessas eleitorais em três meses de governo, acaba de declarar default ao default, revendo para cima o prazo e a dimensão do corte no défice público — e Bruxelas que engula. Em Inglaterra, um outrora tão seguro de si e das suas verdades liberais, David Cameron, declara-se “very, very, disappointed” com os números crescentes da recessão em que, para seu espanto, mergulhou o país. Entre nós, porém, cada dois meses Vítor Gaspar repete-nos que Portugal está no bom caminho. Está, sim: 1500 novos desempregados todos os dias, falências às dezenas diariamente, receita fiscal a cair descontroladamente, projectos úteis para o futuro do país a serem abandonados às cegas e o regresso a um Portugal de emigração que julgávamos morto para sempre. Sim, estamos no bom caminho, mas para as ideias de Vítor Gaspar e deste Governo. Trata-se de desmantelar, não o Estado Social, mas sim todas as funções essenciais do Estado, aquelas em nome das quais somos chamados a pagar impostos; de sacrificar no altar das privatizações a capacidade do sector público ditar regras de concorrência civilizada, ao menos nos sectores essenciais para a salvaguarda da soberania nacional ou para defesa dos consumidores; de assegurar a desforra e instalar o total arbítrio nas relações laborais (somos o 4º país da zona euro a 27 onde a hora de trabalho é mais barata para as empresas e, mesmo assim, insistem em “baixar os custos laborais para as empresas”, em nome da “produtividade”: porque não experimentam o contrário — pagar melhor para ver se a produtividade aumenta?). A agenda política do ‘técnico’ Vítor Gaspar e do Governo de que faz parte é clara como água: vem nos livros e nos manuais e repete-se ciclicamente, de cada vez que os “Chicago boys” querem ajustar contas com o que eles chamam o “socialismo” — isto é, a existência de um Estado que não se limite a ser um simples facilitador de negócios privados. 

No restrito clube de que Vítor Gaspar faz parte ele é, neste momento, um herói e um exemplo. E por isso é que ele gosta tanto de ir lá fora, em especial aos Estados Unidos, pátria dos “Chicago boys”, explicar o nosso “caso de sucesso”. Aí, ele conta a uma audiência embevecida como está à beira de cortar quatro feriados anuais aos portugueses e reduzir a indemnização por despedimento de 30 para 6 dias por ano de trabalho, como dinamitou todas as regras de segurança do emprego, fazendo da “flexi-segurança” uma anedota de socialistas dinamarqueses, como diminuiu os custos do trabalho para índices chineses (a vingança póstuma de Manuel Pinho!), como cortou a eito todas as prestações sociais e como vai tornar Portugal atractivo para o investimento estrangeiro vendendo empresas públicas ao preço de loja de penhores. E como faz tudo isto com uma paz social que é a devida aos justos. Só não lhes conta, porque ficaria mal perante tal audiência, que também tem empenhado dinheiros públicos a sanear as finanças de empresas que depois são privatizadas e que tem subido impostos e taxas como nenhum governo socialista jamais se atreveu a fazer (e, aliás, com uma estranha consequência, qual seja a da receita pública, em lugar de crescer... estar a diminuir!). Levado pelo entusiasmo, Gaspar até se atreveu a declarar ao “New York Times” que tinha chegado à conclusão de que “há alguns limites às intuições de Keynes”. E, ainda os leitores americanos não tinham recuperado da revelação, e já ele garantia também que “as políticas expansionistas keynesianas seguidas em 2008 (nos Estados Unidos e na Europa), falharam e podem ter sido até contraproducentes”. Apenas se esqueceu de explicar que culpa teve Keynes na falência do Lehman Brother’s, do fundo Maddoff, no estoiro da bolha imobiliária americana ou espanhola, nas livres actividades de pirataria financeira consentidas pelo governo Bush e inspiradas pelos colegas do clube de Gaspar, que mergulharam a economia mundial no caos e obrigaram os países avisados a chamar de volta o velho Keynes para evitar o colapso iminente de todo o sistema. Ou seja: queixou-se da quimioterapia mas esqueceu-se do cancro, como se aquela não decorresse deste. Por aqui se pode avaliar o belo sarilho em que estamos metidos. 
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1 comments:

Anónimo disse...

É um técnico com agenda ideológica.