28.4.12

Se uma andorinha não faz a Primavera, duas pessoas já fazem uma manifestação


@João Abel Manta

A propósito da constituição em arguida de uma activista do Movimento Sem Trabalho, a porta-voz da PSP afirmou ontem que «duas pessoas já fazem uma manifestação» e que «qualquer manifestação tem de ser comunicada à Câmara Municipal». 

Alegou basear-se num Decreto-Lei de 1974 (406/74) e num parecer da Procuradoria-Geral da República de 1989. Este parecer não está disponível online, pelo que não sei por que motivo foi elaborado e de que contexto foi retirada a frase que Carla Duarte cita, mas o Decreto-Lei de 74 é totalmente contrário, no espírito e na forma, à sua utilização neste caso, nomeadamente porque nunca especifica qualquer número mínimo ou máximos de pessoas em manifestações. 

Mais: certamente que, na Escola Superior da Polícia, não se ignora a existência da Constituição Portuguesa de 1976, em cujo Artigo 45º é expressamente dito que «Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização» e que «A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação». Portanto, esta agente policial e os seus superiores ignoram a lei fundamental que nos rege e agem em conformidade. 

Leio, na notícia do Expresso, que a arguida vai proceder criminalmente a PSP por esta actuação, e fico, sem esperança, à espera do resultado. 

Claro que vêm inevitavelmente à lembrança os 48 anos de ditadura. E que se acautele quem continua a apregoar que temos uma democracia sólida e garantida porque existe liberdade (esquecendo que a solidariedade já se foi…): (ainda?) temos eleições livres e liberdade de expressão, o direito de reunião está já a ser criminalizado.

P.S.1 – Um leitor deixou em comentário o link para o tal parecer da Procuradoria-Geral da República, em cujo texto não encontrei qualquer referência que permitisse concluir que «duas pessoas já fazem uma manifestação»

P.S.2 - Recebi hoje (30/4), por mail, o seguinte esclarecimento que transcrevo:



Referia que não conhecia o parecer da PGR, e um leitor indicou-lho.

Porém, trata-se do Parecer errado, o correcto é este:

As conclusões do mesmo (é interessante mas fastidioso ver a argumentação) são:

1 - As decisões dos tribunais, uma vez transitadas em julgado, tornam-se indiscutíveis e são obrigatórias para todas as entidades publicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades;
2 - O Decreto-Lei n 406/74 de 29 de Agosto, ao regulamentar o direito de reunião e manifestação, não afecta o conteúdo essencial deste, pelo que se apresenta conforme a Constituição da Republica;
3 - A sede do órgão de soberania - Governo para os fins do artigo 13 do Decreto-Lei n 406/74, devera ser entendida como toda a instalação destinada ao exercício de funções oficiais, a pratica de actos de governação, desde que se apresente com um mínimo de conteúdo institucional, de estabilidade, de organização e de permanência;
4 - A falta do aviso prévio a que alude o artigo 2 do Decreto-Lei n 406/74 torna a reunião ilegal, sendo, por isso, legitima a intervenção policial;
5 - A autoridade policial, ao decidir intervir perante uma reunião ilegal, deve ponderar os interesses em jogo, tendo em conta critérios de necessidade, eficácia e proporcionalidade;
6 - As autoridades devem adoptar providencias, alem das expressamente referidas no Decreto-Lei n 406/74, sempre que for necessário harmonizar o exercício do direito de reunião e manifestação com o exercício de outros direitos igualmente protegidos;
7 - Compete as autoridades policiais que superintendem na área onde decorre a reunião ilegal emitir a ordem de dispersão e, se necessário, fazer cumprir essa ordem pelos respectivos agentes;
8 - Para que se possa verificar o crime previsto e punido no artigo 292 do Código Penal, a autoridade competente para dar a ordem de dispersão, devera fazer a advertência de que a desobediência a sua ordem e criminosa de forma a ser compreendida pelos participantes dessa reunião.

Ora, convirá atentar a que a história do nº de pessoas resulta da assumpção do autor do Parecer - e para a coisa não importa muito. Faria diferença se fossem 3 ou 4 ou uma dúzia? Claramente, não.

Registe-se que efectivamente o tal DL (que está aqui) prevê que uma manifestação que não cumpra o dever de aviso prédio implica crime de desobediência (ver artigo 16º).

Atentemos porém nas conclusões 4 a 8 do Parecer. No caso vertente, a situação prevista em 4 (apesar de dever designar-se "irregular" e não "ilegal") poderá ter existido, logo haveria legitimidade para uma intervenção policial.

Mas as disposições referidas nas conclusões 5 e 6 não terão sido respeitadas. E em consequência as possibilidades de acção previstas nas conclusões 7 e 8 não poderiam ter existido. Logo, a PSP excedeu-se... e terá de ser chamada à pedra por isso.

Convirá também não esquecer duas coisas:
-isto é um Parecer, não uma decisão judicial, logo tem o valor que se queira que tenha; não é por a PGR entender que algo é (ou não) constitucional que o passa a ser
-o DL é anterior ao texto constitucional mas foi mantido porque dava jeito, apesar de ter sido feito numa altura em que havia efectivamente alguma confusão nas ruas na sequência da Revolução; e note-se que Spínola ainda era o Presidente...

6 comments:

David Crisóstomo disse...

encontrei aqui o tal parecer de 1989 da PGR:
http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/871ab8ad04a0b1648025703f0035b104?OpenDocument

o mais incrivel é que das duas uma: ou a senhora porta-voz não leu o parecer que cita ou têm dificuldades de interpretação de texto que me causam dores de cabeça. Deixo só aqui a citação mais significativa a meu ver o dito parecer (que em nada fala da teoria do "duas pessoas já são manifestação" - dessa gostei realmente, por essa lógica não faço outra coisa o dia todo):
"Recorde-se, porém, que a Constituição apenas estabelece duas restrições básicas: a não dependência de autorização prévia; e a exigência de carácter pacífico e sem armas."

Joana Lopes disse...

Muito obrigada pelo seu comentário, David Crisóstomo. Vou pôr uma adenda no «post».ai

Manuel disse...

De onde se conclui que estando 2 policias ou gnr juntos ainda que dentro de um carro podem ser processados por manifestação ilegal não comunicada à autoridade correspondente.

É isso ?

o castendo disse...

Para a PIDE/DGS eram 3 pessoas...

David Crisóstomo disse...

Peço desculpa pela indução em erro que provoquei, sendo que aproveito pra dizer que após ter lido o parecer correcto (que já agora é na minha opinião parcialmente contraditório com o outro que lhe forneci) concordo plenamente quando se argumenta que a PSP poderá provavelmente ter-se excedido e que daí elações deverão ter que ser tomadas.
Mais uma vez peço desculpa por ter-lhe transmitido a informação errada. prometo um double-check numa próxima vez.

João Simões disse...

Em concreto, esta situação retrata a identificação de uma cidadã por infração ao n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 406/74 de 29 de Agosto, publicado no Diário da República 201, Série I, nomeadamente “As pessoas (…) que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis (…) o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito.”

Devido à não comunicação à Câmara Municipal de Lisboa, a promotora/organizadora do evento incorreu no crime de desobediência qualificada de acordo com o n.º 3 do artigo 15.º do mesmo diploma, onde é referido “Aqueles que realizarem reuniões, comícios, manifestações ou desfiles contrariamente ao disposto neste diploma incorrerão no crime de desobediência qualificada.”


Por último resta clarificar o termo “Reunião”. De acordo com o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, com o n.º P000401989, no seu ponto 8.1 lê-se:

"O termo reunião (…) não tem qualquer limitação ou exigência máxima ou mínima de participantes, bastando, como diz Vital Moreira, "Constituição", 125, uma "pluralidade de participantes".

Daqui resulta que se verifica uma reunião sempre que uma pluralidade de pessoas se agrupe, se congregue, qualquer que seja o fim a prosseguir.

Bastará que este agrupar seja organizado, prosseguindo determinado fim, desde que esse fim não seja contrário à lei, moral, direitos das pessoas singulares ou colectivas, ordem e tranquilidade públicas - artigo 1º do Decreto-Lei nº 406/74.

Assim, existirá, juridicamente, reunião, qualquer que seja o tipo de exteriorização de objectivos, mesmo até que esta seja silenciosa ou por cartazes.
E assim, uma vigília não pode deixar de se definir como reunião.”

Tenho dito.