30.8.12

Manuel Loff: Difamação


Tendo publicado (aqui e aqui) os dois primeiros textos de Manuel Loff, inscritos na polémica com Rui Ramos, que não sei está ou não a chegar ao fim, faço o mesmo ao terceiro (divulgado no Público de hoje). 

O debate de ideias não é fácil. E menos ainda quando se o procura evitar arrastando-o para um terreno que se pretende descrever como moral, quase judicial. Rui Ramos (RR), coordenador da História de Portugal que o Expresso que o decidiu oferecer aos seus leitores e que eu critiquei, na parte que lhe cabe, nas minhas duas últimas crónicas no PÚBLICO (2 e 16 de agosto), queixava-se há dois anos de que “vivemos num mundo muito diferente do que eu vivi em Inglaterra ou em Espanha, onde nos mesmos seminários, congressos e departamentos convivem pessoas com ideias muito diferentes, discutindo acalorada ou friamente, mas debatendo ou divergindo” (PÚBLICO, 31.5.2010). Ramos reagira assim quando, no PÚBLICO, São José Almeida o confrontou com as opiniões de vários historiadores (F. Rosas, A. Costa Pinto, M. de Lucena, I. Pimentel, eu próprio, com quem ele, mal ou bem, tem convivido em congressos, júris, comités), entre as quais se formularam críticas mais duras do que aquelas que eu agora dirigi ao seu trabalho.

O debate em torno do livro em questão não é novo e não surgiu do nada. A RR não se lhe ocorreu então de falar de “um simples caso de difamação pessoal”, de “desfaçatez”, de “calúnias” e “falsidades” — tudo epítetos com que me brinda hoje, evitando tratar-me pelo nome e chamando-me “um colunista quinzenal” do PÚBLICO, negando tratar-se de “uma polémica historiográfica ou [de] uma questão de opiniões”. Pela minha parte, habituado a que estou a que se use a tática da vitimização para desviar o debate, não alimentarei semelhante estratégia respondendo a tais epítetos — mas confesso achar que será fácil ao leitor perceber, como quase sempre acontece nestas situações, como todos eles poderiam recair sobre o seu autor...

É, no mínimo, excêntrico que RR gaste uma página inteira deste jornal para responder a “acusações” — a expressão é usada três vezes — “tão absurdas que não deveriam merecer resposta”. E, contudo, quem, como ele diz de si próprio, “há 7 anos que escrev[e] na imprensa semanalmente e particip[a] em programas de TV”, deve saber submeter-se à mesma crítica pública a que sujeita, como ele tem sujeitado, os outros. Sobretudo se publica resultados da sua investigação sob a forma de livro: nessas vestes, sabe que está sujeito ao contraditório e ao debate, regra intrínseca à produção de conhecimento que se pretende científico. E esse debate, mesmo que desenvolvido num jornal e não numa revista especializada, faz-se sempre com um mínimo de regras metodológicas simples, que passam por citar rigorosamente o que se pretende contradizer/discutir — o que fiz com tudo quanto de RR citei, ao contrário do procedimento (esse, sim, manipulador) que ele seguiu para se referir às minhas críticas, evitando fazer citações diretas e permitindo-se, assim, atribuir-me o que não escrevi. Ramos caricatura os meus argumentos e quer responder à caricatura. Se tal fosse admissível seria fácil, mas as minhas crónicas não foram escritas no Inimigo Público...

RR inventa até que eu lhe teria chamado fascista por escrever o que escreveu — adjetivo (com aspas, como se de uma citação minha se tratasse!) que usa três vezes na sua resposta. Imagino que queira arrastar-me para alguma alucinação sua de 1975, mas não o sigo. RR não precisa de ser fascista para ser um empenhado relativizador da leitura histórica da ditadura salazarista, que procura há anos desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo para a tornar banal, comum, no contexto histórico em que ela se desenvolveu, usando argumentos que se conhecem há muito na Alemanha, em Itália, em Espanha, em França, entre outros, para relativizar experiências ditatoriais sobre cuja condenação se baseiam as democracias contemporâneas europeias, procurando branquear a imagem das ditaduras, quer reduzindo o seu peso histórico específico, quer contaminando todas as outras experiências políticas contemporâneas com a mesma suspeição moral. Há 15 anos que estudo este fenómeno; nada do que Ramos escreve me parece novo.



Sabendo bem como é inútil e desinteressante tornar estas discussões num o-que-eu-disse-mas-não-disse, é-me imprescindível insistir em que não escrevi que RR teria defendido “que a ditadura de Salazar não era uma ditadura, mas um regime democrático e pluralista”, como ele me atribui. O que disse, e reitero, e documentei devidamente, é que procurou desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo, relativizando algumas das suas caraterísticas essenciais enquanto tal: (i) tomando a sua retórica propagandística como realidade; (ii) comparando-o com o liberalismo inglês do séc. XIX (p. 640) e com “uma espécie de uma monarquia constitucional” (p. 632), metáfora que, ao contrário do que RR escreveu há dias atrás, não tem curso legal entre “historiadores e juristas de diversos quadrantes ideológicos”; (iii) pressupondo haver uma “persistência do pluralismo” relativamente ao sistema liberal (p. 650); (iv) travestindo partido único, sindicatos nacionais, grémios corporativos, casas do povo, de “associações” “cívicas”, de “representação da população ativa”, “de socorro e previdência”, “desportivas e culturais” (pp. 627 e 644).

Dois casos terão irritado mais diretamente RR: a sua avaliação da repressão salazarista e aquilo que eu entendo ser uma visão intelectualmente cínica de um salazarismo que, afinal, “não destoava num mundo em que a democracia, o Estado de Direito e a rotação regular de partidos no poder estavam longe de ser a norma na vida política” (p. 669). As duas questões convergem para uma mesma visão, para a qual ele pretende conduzir o leitor: o salazarismo foi um regime claramente menos repressivo que a I República e o período revolucionário de 1974-75 (cf. pp. 652 e 732), e menos até que “regimes democráticos contemporâneos na Europa [que] apresentaram contabilidades repressivas análogas ou piores” (p. 652). Se aceitássemos como legítimas semelhantes leituras manipuladas da História, muitos achariam que o salazarismo, como aqui escrevi, poderia voltar a ser um regime para o nosso tempo.

Em contraste radical com a avaliação que faz do salazarismo, RR tem proposto um retrato especialmente retorcido do republicanismo e da I República portuguesa. É daquelas coisas que não há ninguém na historiografia portuguesa que não saiba. Sendo relativamente consensual discutir a democraticidade efetiva do sistema político republicano, sobretudo pela ausência de sufrágio universal, RR tem proposto comparações e interpretações que se qualificam a si próprias. Ele foi, por exemplo, capaz de encontrar semelhanças entre o republicanismo português e... o nazismo e a preparação do Holocausto. Não só ambos estiveram “umbilicalmente ligados a organizações esotéricas, de que retiraram símbolos e parte da retórica”, como, sobretudo, “o ódio [republicano] aos jesuítas constituiu uma espécie de antisemitismo da República. Aliás, algumas das medidas que Miguel Bombarda sugeriu contra os padres jesuítas (expulsão para uma ilha deserta, etc.) são semelhantes ao que os nazis alemães, alguns anos depois, pensaram fazer aos judeus, antes de se decidirem a exterminá-los” (A Segunda Fundação, 1890-1926, 1994, pp. 413 e 411). Para ele, “a República de 1910 (...) era um Estado confessional e de partido único” — exatamente aquilo que nega sobre o salazarismo, contrariando a maioria da historiografia —, tomado pela “ideia do ‘despotismo da liberdade’” que Ramos acha ser caraterística da “esquerda [que] dispôs sempre dos meios teóricos necessários para chamar “democracia” à imposição de uma vontade minoritária”. “Depois de 1926, a restauração das “liberdades públicas” fez parte das reivindicações do reviralho” oposicionista de 1926-31, “mas essa piedosa e modesta reivindicação foi sempre a canção do bandido [!!] de quem estava na oposição.” [Análise Social, vol. XXXIV (153), 2000, pp. 1062, 1064]. Uns equivalem-se aos outros, está visto...

Não creio ser necessário acrescentar mais nada.

P.S.: Parece haver um turbilhão de reações nos blogues da direita intelectual a estas duas crónicas minhas. Alguma coisa deve ter a ver com agosto e a silly season. A mais excêntrica e ofensiva de todas é a de António Araújo no PÚBLICO, um homem de que me habituei a citar um livro sobre a constitucionalização do salazarismo, que veio agora desenterrar uma crónica minha num jornal online já desaparecido de há... 6,5 anos atrás!, sobre os novos assessores da Presidência da República (ele incluído), e que ele não contrariou então. É incompreensível que, todos estes anos depois, Araújo pretenda que isto tenha a ver com a discussão do “modo de escrever a nossa História contemporânea”, muito menos com o livro de RR. Confundindo uma série de opiniões que eu, efetivamente, não lhe atribuí, é inaceitável a colagem que faz à minha discussão com RR, e menos ainda o tom de desafio e de banco dos réus (“delito”, “caluniar e difamar”, “vilipendiar”...) que assume. Assim não há debate possível.
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14 comments:

pilantra disse...

Quem sabe de tipos de branqueamento, topa RR à distância.
Quem lê RR sabe perfeitamente do que fala Manuel Loff.
A chatice destes novos catequistas tipo RR é que obrigam gente útil, como o M.Loff, a distrair-se do que está a fazer para responder a meia dúxia de balelas - elas sim difamatórias da verdade, mais que dos homens.
RR só engana quem procura enganar-se ou a quem tanto lhe faz.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Rui Ramos, na sua anterior resposta, escreve: "Recorrendo a tais métodos, e com a desfaçatez com que são usados neste caso, seria possível "provar" que qualquer pessoa é "fascista"". Manuel Loff, achando que todos os leitores são estúpidos que não o merecem, contrapõe: "RR inventa até que eu lhe teria chamado fascista por escrever o que escreveu - adjectivo (com aspas, como se de uma citação minha se tratasse!) que usa três vezes na sua resposta". Sendo o bocado que citei a única vez que Rui Ramos usa a palavra fascista neste sentido (as outras, sem aspas, usa-as em frases como "(cito-me: "Em 1940, o Estado Novo lembrava em muitos aspectos o Estado fascista italiano")" fica perfeitamente clara a seriedade de Manuel Loff.
henrique pereira dos santos

Septuagenário disse...

Tenho que saber quem é o Loff e o RR.
Os excessos a que me obriga este blog!!
E já na minha idade! Huf!!!

Anónimo disse...

Loff, ouça o que lhe digo: não fale mais nisso. Já chega. Se falar, cada vez se enterra mais.

Sonia Ferreira disse...

Para quem continua a procurar soluções para desculpar a forma como Loff se enterrou nesta história, recomendo a todos a leitura deste pedido de desculpas tão sincero e humilde, de Pedro Rolo Duarte.
http://pedroroloduarte.blogs.sapo.pt/281681.html

É raro neste país alguém fazer uma retratação destas.
E, com isto, ao confirmar que «manipula, extrapola, inventa e deturpa, de forma rasteira e sem pingo de vergonha, o que Rui Ramos escreve», e com isso faz com que sejam «enganados e manipulados aqueles que leram ingenuamente, como eu, a crónica de Manuel Loff», revela bem o tipo de desonestidade intelectual que Loff cometeu.

Para quem o queira desculpar, que explique, se é que consegue, qual a desculpa que arranja para a pura e simples FALSIFICAÇÃO de citações, atribuindo a Rui Ramos frases que ele nunca disse e colocando-as entre aspas.

Anónimo disse...

Sr Loff, as tomadas de posição que decidiu tomar publicamente, com todas aquelas acusações inventadas e baseadas em deturpações dos factos e afirmações, já ninguém lhas tira. Agora, o único poder que tem é o de decidir o que faz deste ponto em diante. Para isso tem essencialmente duas opções: insistir nas acusaçõe sinventadas baseadas em deturpações dos factos e afirmações, ou reconhecer que, como ser humano, falhou e com isso ter a hombridade e o respeito de aceitar essa falha, pedir desculpa pelo lapso e seguir com a vida. Com esta entrada de blog é claro que está a optar pela via das aldrabices e deturpações das acções do passado, em vez de remediar as asneiras que tem cometido. As acções caracterizam quem as toma, e é com elas que ficam.

Anónimo disse...

"Cheguei" agora a este assunto que é absolutamente novo para mim e já li a resposta de RR e ML.
Penso que o que o sr. ML devia fazer era republicar o artigo que escreveu á já 7 anos no diario digital para podermos aferir da veracidade dos comentáruos de RR. Iria também desta forma ao encontro do leitor "pilantra" que está muito preocupado que perca tempo a responder a RR em vez de estar a fazer trabalho útil.

Rui Silva

APC disse...

Um perfeito exemplo da desonestidade intelectual que grassa em certas mentes iluminadas.

Cresça e apareça Manuel Loff, esta atitude é vergonhosa.

JMLC disse...

Uma característica de todas estas reacções de direita (e até de extrema-direita) aos artigos do Manuel Loff é que nenhuma apresenta factos nem argumentos para desmontar a interpretação do Loff. Se, por acaso, leram os artigos em causa, facilmente constatam que o Manuel Loff apontou factos, apresentou argumentos e, obviamente, retirou conclusões (que, aliás, eram evidentes). E, mesmo após a resposta malcriada do R.Ramos (o que é muito significativo) voltou a responder com factos e argumentos, e de uma forma educada. De todos os que têm vindo a vociferar (e a insultar) contra os artigos do M. Loff – o próprio Ramos (que usa extractos de outros trabalhos seus para tentar responder, mas não se centra nas observações que M. Loff faz do que ele escreveu no livro !) – e agora a inenarrável Mónica (cuja “obra científica", já foi analisada por Eugénio Lisboa, que a arrasou por completo). NINGUÉM apresenta argumentos contra o que o Loff escreveu. NADA ! É uma pobreza franciscana. Não querem debater, querem sentenciar. Está-se mesmo a ver que estão carregados de razão. E ainda falam em "desonestidade intelectual". Que topete!

Sonia Ferreira disse...

JMLC: «NINGUÉM apresenta argumentos contra o que o Loff escreveu».
Pois não. O maior argumento é a própria História que Rui Ramos escreveu. É só comparar o que Rui Ramos escreveu com o que Loff diz que ele escreveu. Neste caso, não é preciso mais nenhum argumento. Para apanhar um mentiroso, basta vê-lo a contar mentiras, não é preciso mais nada.
Passe bem, boa noite.

Anónimo disse...

Alguém pode indicar o endereço onde encontrar o texto do Rui Ramos a que se refere o Loff?
É que assim, sem esta indicação, fica difícil aquilatar quem fala verdade.
JP

Anónimo disse...

Sonia Ferreira: Fiquei esmagado com a sua argumentação. Ainda não me recompus. Mas continuam a não apresentar argumentos nem provas das putativas deturpações do M. Loff. Será porque não entendem o que ele escreveu ? Passe muito bem.
JMLC

Anónimo disse...

Final uma nova «questão coimbrã»!! A retórica está quente! Quanto a mim, tenho de ver tudo para me informar comm'il faut. Mas a coisa está ajindungada...
Vá continuem a escrever com esse tom bravo que estou a gostar.
Estou farto de gráficos de desemprego!
R.C.C.P.

Anónimo disse...

Ver extremistas ideológicos debaterem como as suas acusações inventadas e baseadas em deturpações dos factos, afinal, nunca o foram, é uma triste tradição retórico-demagógica infelizmente omnipresente neste cantinho à beira-mar plantado...
Loff, a ser sério e a querer ser encarado enquanto sério, deveria ter a humildade e a honestidade intelectual de perceber que reagiu excessivamente ao mero exercício do contraditório por um dos seus pares. O facto de Rui Ramos, uma pessoa certamente conotada com a direita, haver desmontando de forma tão congruente e consistente a argumentação de Loff, ainda para mais fazendo-o com a maior das serenidades e sem recurso ao insulto fácil, claramento tê-lo-á deixado "possesso"... A sua reacção demonstrou-o em plenitude, tal como tornou cristalino que Loff não admite qualquer tomada de posição ou crítica construtiva que não resulte num "ámen" integral e bajulador das suas próprias posições.
Este "joguinho" de Loff recorda-me aquelas crianças que batem num colega de quem não gostam porque ele tem um brinquedo novo e depois encetam uma infindável gritaria de acusações numa de lógica "quem começou foste tu! Tu! Tu! Tu!"..
Muito mal vai a Academia portuguesa...