13.9.12

Manuel Loff: As formas e o fundo de uma polémica


Polémica Manuel Loff / Rui Ramos: quarto texto do primeiro, no Público de hoje.


1. Desviar a discussão... 

A crítica que aqui publiquei às teses desenvolvidas por Rui Ramos (RR) sobre a ditadura salazarista e, na sua comparação com esta, a I República suscitou um coro de protestos contra as minhas posições (e literalmente contra mim) que superaram tudo quanto é aceitável e razoável. Uma forma muito eficaz de dar cabo das discussões é pejá-las de insultos, insinuações, e deixar um campo minado no qual não volta a ser possível retomar o fio à meada do rigor dos argumentos. O desinteresse dos demais propaga-se como fogo na planície, e instala-se a perceção de que os protagonistas, cada um gritando mais alto que o outro, já nada dizem de relevante... 

Nas duas últimas duas semanas assistiu-se ao disparate total! Antigos colegas de RR na instituição em que ele trabalha, os dois co-autores do livro coordenado por RR (sobre cujo trabalho nunca me pronunciei), cronistas deste jornal, não hesitaram em fazer descambar o debate (Ramos acha que não há debate sequer...), patinando naquilo que os próprios (é reveladora a tentativa de inverter tudo!) descrevem como “desqualificação moral e pessoal” do “adversário” ( José M. Fernandes, JMF, PÚBLICO, 7.9.12). É o que aconteceu com a incontinência verbal de M.ª Filomena Mónica (MFM), para quem eu serei “estúpido”, “fanático”, “historiador medíocre” (PÚBLICO, 1.9.12). Ou a surpreendente capacidade de alguns de antecipar/adivinhar opiniões que não formulei e sobre as quais nada se discutiu aqui — por exemplo, de que eu não “não [poderia] dizer” terem “natureza ilegítima, repressiva e criminosa os regimes estalinistas” (Sá&Monteiro, PÚBLICO, 4.9.12). (Curiosamente, foi de mim que alguém disse aqui que eu seria preconceituoso!) E depois repete-se, no vazio, que as minhas críticas ao livro de RR terão sido “falsificação”, “calúnia” e “difamação” sem se rever cada uma das citações que eu fiz do texto de RR. Tem efetivamente razão quem diz que “debater seriamente interpretações históricas, sim; aceitar insultos, não” (Sá&Monteiro, 4.9.12)! É o meu caso. É cansativo, é lamentável (e não direi mais), que se pretenda que toda a crítica é, afinal, difamação e insulto. E estou plenamente de acordo com Diogo Ramada Curto (DRC) quando este descreve o nosso como “um panorama cultural avesso a críticas ou onde estas facilmente derrapam no comentário truncado e numa guerra de bandeiras” (PÚBLICO, 8.9.12); não deve, isso não, é julgar que eu enfio o barrete das guerras de bandeiras. Compare-se, para tal, as intervenções deste coro de ofendidos com aquelas que aqui se têm publicado em tom crítico com o livro de RR e deduza-se quem terá lançado a “guerra civil” de que fala JMF. É espantoso que RR se queixe da “invasão de campo” de Fernando Rosas, quando este, ao contrário dos intervenientes anteriores, RR incluído, é um reconhecido especialista no estudo da ditadura salazarista (e nem precisa aqui que se sublinhe o papel central que nele teve e tem). Se arma há de “guerra civil” que se tenha usado neste debate ela é a do apelo à censura de Mónica (“espanta-me que a direção [do PÚBLICO] tenha dado voz a alguém como Manuel Loff ”) e Barreto (“Sei bem que a liberdade de expressão não pode ser limitada de ânimo leve (...), mas é sempre triste ver que a inteligência, o rigor e a decência têm por vezes de ceder perante essa liberdade última que é a de publicar o que se pensa”). 



Estou esclarecido. E não sou seguramente o único a achar que esta polémica tem permitido perceber melhor por que valores se pautam alguns dos nossos académicos. E o que é patético é, depois disto, ter de ouvir alguém clamar contra a “arrogância típica de uma determinada esquerda”, para a qual “apenas quem é de esquerda pode opinar, publicar e ter tempo de antena” ( José Carvalho, PÚBLICO, 10.9.12). Deve ser por isso que Mónica, Barreto, Ramos et allii escrevem e falam nos media desde há décadas e publicam com a visibilidade com que publicam...

Um festival de falta de rigor — e de politização barata, rançosamente populista, da discussão. Os mesmos que disseram que eu não passava de um “marxista-leninista”, para quem “a deturpação de um texto é uma arma perfeitamente legítima” (MFM, 1.9.12) inventaram (e repetiram à saciedade, a ver se colava) que eu teria chamado fascista e/ou salazarista a Ramos num jogo de dedução (quem diz que RR relativizou a natureza da ditadura achará que ele é fascista) de uma tal pobreza intelectual que só é digna de quem acha que criticar as teses de RR sobre o salazarismo é “um exercício político típico de quem divide o mundo entre comunistas e fascistas” ( JMF, 7.9.12)!

Faço investigação histórica há 23 anos, centrada sobre as ditaduras do séc. XX; e ainda que a maioria dos que têm participado neste coro dos ofendidos não a façam, sei que os documentos permanecem, e que é fácil rever aquilo que originalmente escrevi (que escrevemos todos) e confrontar com aquilo que se me quis atribuir. Mais à vontade do que me sinto neste campo não me poderia sentir! 


2. O problema de fundo 

Por mais que os co-autores da História de Portugal assegurem que “membros qualificados da universidade e da vida cultural portuguesa (...) nunca puseram em causa o rigor do trabalho” (Sá&Monteiro, PÚBLICO, 4.9.12), não podem ignorar que o trabalho de RR nessa obra tem sido objeto de debate e de críticas muito diretas — de que, aliás, esta polémica não é mais que a sua emergência mais pública. Antes de mais, elas têm a ver com o facto de se tratar de, como lhe chama DRC (eu diria que de forma eufemística, mas sou eu que o digo!), “uma obra de síntese — que tem de ser feita a partir de trabalhos em segunda mão, muitas vezes sem a consulta de fontes primárias, mas com a ambição de lançar explicações de conjunto” (PÚBLICO, 8.9.12). É acima de tudo na construção dessas explicações de conjunto que se percebe (e reitero-o) a manipulação que RR faz da história da ditadura salazarista. A sua opção por proceder a sucessivas comparações, essas sim descontextualizadoras (termo que se me quis aplicar), constitui um modelo de inteligibilidade da história absolutamente duvidoso: o “terror” republicano pior do que a “opressão” salazarista; o antijesuitismo republicano e o anti-semitismo nazi; a monarquia constitucional e o sistema político salazarista; “sistemas de poder pessoal” como o gaullista em paralelo com o salazarista (p. 669), ou “monopólios de um partido, como [a Democracia-Cristã] em Itália e [a Social-Democracia] na Suécia” (p. 669) com o do partido único no Estado Novo, ou os “constrangimentos policiais” na Grã-Bretanha dos anos 1970 com a repressão marcelista... Esta pode ser uma “História global, compacta e homogénea”, como lhe chama Barreto; o que ela não é é rigorosa! Poucos prestaram atenção ao contributo que João P. Avelãs Nunes trouxe a este debate, distinguindo “negacionismo” de “revisionismo”. Não se disse aqui que RR negou a ditadura salazarista: o que eu escrevi é que ele desmonta a sua natureza, banalizando-a, fazendo com que se confunda com experiências históricas que lhe são absolutamente estranhas. Ele não negou a existência da PIDE, por exemplo; ele disse que ela matou menos que os republicanos e até que “a Itália democrática de 1948-62” (p. 652). E, além disso, em alguns casos há, efetivamente, pura negação: “não houve saneamentos gerais de funcionários” (p. 653), “o recrutamento” de soldados para a Guerra Colonial “nunca foi um problema” (p. 684). Ou há pura especulação, que contraria o que diz a investigação (e a memória): “a guerra [colonial] foi aceite” pelos portugueses (p. 685).

É isto, portanto, o produto da “serenidade académica” com que Barreto vê terem sido “finalmente tratados” os “regimes políticos [portugueses] modernos e contemporâneos”? É esta a “normalização“ da “interpretação do Estado Novo” que, numa “ilusão de imparcialidade” ( José Neves, PÚBLICO, 12.9.12), ele diz descortinar entre a “tenaz de ferro” das “várias formas de “nacionalismo” e de “marxismo” e respectivas variantes [que] tinham dominado a disciplina durante décadas” (PÚBLICO, 4.9.12)? Que fraseado mais arrevesado e pretensioso para o que não passam de 200 páginas de qualidade mais que duvidosa...

O debate sobre a representação das experiências ditatoriais contemporâneas é, além de tudo o resto, um debate central na definição das nossas identidades coletivas. Aqui como na Alemanha, em Itália, em Espanha. Não perceber o seu caráter excecional, moderno, intrinsecamente violento e opressivo, e, portanto, claramente recidivo, é não perceber nada da história do séc. XX. 
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5 comments:

António Campos Leal disse...

Caro Dr. não deixa de ser interessante que alguns "estudiosos" da história sofram de falta de rigor cientifico quando "analisam" períodos da história em que de uma ou outra forma podem ser encontrados os favorecimentos das suas relações. Talvez por isso tenham surgido tão doutas personagens a clamar contra a sua posição que, acredito, tem o rigor de análise que sempre lhe encontrei, ao contrário de alguns dos detractores. Convenhamos que ser razão de agitação para Filomena Mónica não irá por certo tirar-lhe o sono.

António Pedro Pereira disse...

E o mais extraordinário é que há opinadores que nem leram esta História de R. Ramos (nem a anterior sobre a I República, de 1994, vol. 6 da H. de P. de José Mattoso, imprescindível para se verificar a diferença de perspectivas entre as duas no tratamento desta realidade histórica), nem os textos da polémica.
Desataram a defender a sua bandeira, como é habitual no «pretenso» debate público nos tempos que correm.

Anónimo disse...

Vai mas é estudar, comuna!

Anónimo disse...

Muito gostaria que aproveitasse o seu empenho como historiador para publicar os resultados do inquérito parlamentar á fortuna do Dr.Salazar. De que rendimentos viveu toda a sua vida, quantas contas bancárias teve, onde passava as suas férias e quanto pagava por elas. Depois comparar com os democratas que mandaram esta república às couves, pois estou certo nãop encontra nem um que se lhe compare.
Cumprimentos
AFBarreira

Anónimo disse...

Pessoal, tenham calma, que a crítica á excelente obra ainda nem sequer foi ao período medieval. Pelo que dizem da época contemporânea, não será muito difícil de adivinhar o que dizem do antanho. Rapazes do Expresso, estai sossegados, ides realmente ficar na História!