14.4.12

Ó mãe, eu não posso faltar!! Eu hoje tenho prova escrita!



Este blogue vai publicar, nos próximos dias, posts relacionados com o 25 de Abril. Este é o primeiro, da Rita Veloso, e é divulgado hoje porque nele se refere uma carta escrita há exactamente 41 anos.


Há 38 anos a minha mãe acordou-me era noite cerrada e disse-me que me ia deixar em casa dos meus tios.

Protestei muito, porque ia ter uma prova escrita e toda a gente sabe que as provas na 1.ª classe são muito importantes.

Não me ligou nenhuma e não me levou à escola...

Desde então tenho protestado por não me ter levado com ela para o Largo do Carmo.

Acompanhei a família a seguir os noticiários, o Fialho Gouveia a fumar desalmadamente enquanto dizia coisas totalmente incompreensíveis, para mim, pelo menos. Era uma revolução, uma revolução, diziam os meus tios histérico-nervoso-jubilantemente!

Mas só percebi bem o que isso queria dizer passados dois dias, quando cheguei a casa depois de umas rotineiras compras e o meu pai estava sentado no sofá... Aqui? Nesta sala? Em casa?? Neste sofá vermelho?? O lugar natural do meu pai era o Forte de Peniche, quando muito o Hospital-Prisão de Caxias. Preso político desde os meus dois anos e meio, ele estar em casa era improcessável.

(Ah!, preso político queria dizer que tinha sido preso por política e política não queria dizer roubar carros nem bancos, como a minhã irmã em vão tentava explicar aos colegas na escola.)

Ao fim de cinco anos a vê-lo através dos quadradinhos dos vidros do parlatório ou na sombria sala vigiada das visitas comuns, ter direito a um colo no MEU sofá vermelho foi muito bom!

Obrigada, MFA, Salgueiro Maia, também por isso!

Nas semanas seguintes já organizava as manifs do colégio (com direito a porrada dos esquerdistas e tudo!), fornecendo as letras das músicas da revolução. A minha preferida era o Hino de Caixas; assim lia eu até a minha mãe me corrigir...

Há 6 anos, no Rossio depois da manif "furtaram-me" a mala. Lá dentro tinha o meu caderno da 1.ª classe, do período Março-Abril. Era um registo enternecedor daquela época, com um desenho fabuloso do primeiro 1.º de Maio, outros com dois burros copiados do livro de leitura, com as legendas de Marcelo Caetano e Américo Tomás e um Sol a rir às gargalhadas, ou ainda aquele do aquário com peixes, em que só um terço da água tem cor e ao lado tem a legenda rebelde "Agora não pinto mais, porque fiquei sem tinta". Como apanha também Março, o antes era visível em respostas dos TPC:

P: Qual a profissão do teu pai?
R: O meu pai de momento não trabalha.
P: Gostarias de ter a mesma profissão?
R: Eu cá não gostava nada!

Nunca recuperei esse caderno, nem outros documentos idênticos que levava... E eram a única coisa que de verdadeiro valor estava na mala.

Há pouco tempo ganhei coragem para abrir a caixa das cartas que o meu pai enviou à minha mãe durante aqueles cinco anos. Permitiu-me ouvi-lo com ouvidos de adulto, tão diferentes dos que tinha quando morreu... Partilho um excerto, longo, de uma delas, escrita a 14 de Abril de 1971, ou seja, há 41 anos. Diz que escreve como gostaria um dia de falar com as filhas. Nós ouvimos.

Há meses que ando a ler uma história universal mediocre, em 20 volumes. (Vê lá tu! Ainda me sucede, como ao personagem do Eça, dizer depois "escapou-se-me tudo") Ao longo de páginas e páginas, vão sendo engolidas gerações e gerações. Cartas quase iguais às que hoje se cruzam, foram já escritas. Transcreve a tradução duma, gravada em placas de argila há não sei quantos milhares de anos: um homem escreve a uma mulher perguntando-lhe dum filho, dos parentes, falando-lhe do seu amor, dos seus projectos e das suas preocupações. Montanhas anónimas de pó! Para quê? Às vezes, estremeço e caio no Pessoa: "Sempre uma coisa defronte da outra / Sempre uma coisa tão inutil como a outra / Sempre o impossível tão estúpido como o real / Sempre o mistério do fundo tão certo como sono de mistério da superfície / Sempre isto e sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra!" Mas não é exacto: não foram pó que ao pó regressou; não foram nada acumulando-se sobre coisa nenhuma. Tudo isto, até estes versos de Pessoa, até estas palavras, até esta inquietação angustiada, até estas grades, criaram e acumularam. Estão aqui connosco, todos, neste nosso mundo e em nós. Lembro uma frase (...) sobre as tendências "naturais" do homem. (...) É do século XVIII essa óptica de que a "civilização" afasta o homem do que lhe é natural! Pura idealização a substituir uma outa mística! A história do homem não é senão a história natural duma espécie animal: a espécie humana. Bicho sui generis, a sua história é complexa, mais rápida, multiforme, sujeita a leis também específicas. Mas ainda e sempre uma história "natural": que outra coisa poderia ser? Dito doutra forma, a natureza do homem constroi-se num processo histórico; não é qualquer coisa de fixo, transcedente: é o que historicamente vai sendo. É tolo - e é mau - reduzir a natureza do homem à bestialidade primitiva: ao viver em hordas, à meia dúzia de gritos guturais, à promiscuidade, à ainda animalidade do comer, do habitar, do sentir, do amar, do pensar. Natural também não se confunde com instintivo: negaríamos a realidade palpável do que melhor construímos e somos - ou podemos ser. À (...) citação contraponho esta: «é numa fase adiantada da história do homem que se desenvolve e se produz pela primeira vez a riqueza sensorial "humana", o ouvido musical, a vista sensível à beleza formal, em suma, os sentidos capazes de gozos já "humanos". O homem constroi-se a si próprio humano"» Outras citações ainda mais explícitas eram possíveis. O erro é empobrecer a natureza humana fixando-a num certo homem duma dada étape histórica. O crime é cobrir com o manto do "natural" (logo inevitável, logo bom) intuitos ou sensibilidades ou erros ou caracteristicas grosseiras e mesquinhas - quantas vezes, afinal, apenas a própria imagem; ou, dito doutro modo, mascarar de "natural" o que é já rejeitado pelo próprio homem, o que é já hoje historicamente desumano. Abre-se o caminho ao que se quer e a tudo...

Em quase todas as épocas, grupos de homens buscam para a vida um sentido alheio ao facto essencial de pertencerem à espécie humana - ao que chamamos humanidade. E encontram-se sós, angustiados perante a morte. Alguns atiram-se à conquista cega duma felicidade a curto prazo, agora e aqui, porque a morte é imprevisivelmente certa. Foge-lhes a juventude, fogem-lhes os dias. Velhos, velhos, fazem constantemente as contas ao que ganharam ou perderam: e sempre se perdem por inteiro. Desenfreados (com mais ou menos verniz supra-espiritual ou supra-sensível), afundam-se em qualquer ópio: no haxixe ou na sensualidade ou no vinho ou no jogo ou em qualquer coisa, mais ou menos idêntica. Tentam atafulhar em cada momento uma eternidade que lhes foge. Revelam por vezes a lucidez de quem sabe que apenas se atordoa, de quem se sabe um produto alienado e quase sem culpa duma humanidade que se constrói dividida. "Cadáveres adiados que procriam" - ainda F. Pessoa. O fenómeno atinge, porém, expressões mais significativas e complexas em dados momentos históricos: na decadência grega ou romana, no século XVII da Inglaterra ou XVIII da França, etc; um pouco em toda a parte, quando esta história tumultuosa que fazemos põe em causa valores estabelecidos e simultaneamente aliena e destrói os laços dos homens com o humano; quase sempre, precisamente nas épocas de rotura em que, num outro pólo, transparece um homem mais humano, se afirma mais rica e exemplar a construção da grandeza inequívoca do homem. Hoje, também e mais do que nunca: é o mundo marginal dos hippies, dos provos, dos blusões negros, e o resto - que, afinal, apenas condensam com maior virulência, como num abcesso, a desorientação de largos estractos. Mas as caracterísitcas são ainda idênticas: a desumanização, agora desenfreada, a solidão vazia vazia, o esgotamento, a loucura, o suicídio - fisico ou não. Alienados no individualismo vazio, no gozo epidérmico, saltitantes e instáveis na busca do prazer fácil, acordam cada vez mais sós, mais mortos, mais condenados. Não é uma conclusão moralizante que formulo; é a constatação do logro, da total ineficácia para construir mesmo e sobretudo uma qualquer felicidade pessoal, possível apesar de tudo. O homem só se recupera humano identificando-se com os objectivos naturais (historicamente naturais) da própria espécie: a ética humanista é válida porque é a única senda possível para essa identidade (contraditória, turtuosa e turturada, embora) do homem com a sua humanidade. Eu sei: só se vive uma vida. Individualmente é muito importante, mas não conduz a nada dar-lhe um qualquer significado imediatista, de superficie, de flor-da-pele. O encontro com a morte é irrelevante para pedaço duma humanidade que essa sim se constrói e perdura. Que construímos e em que perduramos. Naturalmente humana, breve radicalmente humana.

Escrevo-te aos supetões porque estou de faxina. Não, com certeza, com palavras abertas, não medidas, como gostava de te escrever. Mas acredita que te escrevo como gostaria um dia de falar à R e à S, isento, convicto, rebuscando dizer-lhes qualquer coisa de muito importante para a sua própria vida. Não palavras para me esconder, não palavras para cobrir fraquezas ou erros ou qualquer outra coisa. Palavras esforçadas para comunicar com exactidão o que aprendi neste "trânsito mortal". Porque contraditório, complexo, com isto ou com aquilo, tal como sou - não faço contas.

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A ratificação precoce



As sábias palavras de José Medeiros Ferreira:

«O excesso de zelo da AR em relação a este tratado toca as raias do ridículo. O nosso governo não teve a mínima participação na sua elaboração, e muitas das normas destinam-se a policiar a governação de países como Portugal e a prever multas gravosas a serem aplicadas a países que venham a exceder os quantitativos dos défices orçamentais e da dívida externa, limites que jamais conseguiram alcançar desde o início da década. A vontade de ser o primeiro Estado a ratificar é assim um mero exercício de fraqueza e de hipocrisia, e como tal será apreciado pelas chancelarias e pelos mercados. (…) 
Com efeito, este tratado iniciou a separação entre Estados-membros da UE com o afastamento de Londres e de Praga do acervo. Esta ferida, salgada com a arrogância de Sarkozy, alargar-se-á a outras capitais caso se venha a permitir, como previsto, que um Estado possa unilateralmente propor uma acção no Tribunal de Justiça contra outro em dificuldades de cumprimento das metas. 
 O "tratado orçamental" foi feito para dividir a UE, não para a unir.» 

Na íntegra aqui.

P.S. – Ler também: Ana Gomes, Tratado: Somos os primeiros! Cadê o brinde?

Alguma dúvida?


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Uma boa sugestão para Miguel Macedo


(Almanaque Bertrand 1908)

Mais a sério e ainda sobre as questões relacionadas com a repressão policial e as recentes declarações do ministro:
«Em 2012, perigoso não são setenta jovens a manifestar-se, perigosos são uma polícia que agiu com intuitos repressivos e um Ministro que questiona habilmente este histórico direito que nos assiste. Se não tivemos, até hoje, problemas com manifestações em Portugal, porquê muscular a actuação policial? Impedir a livre e pacífica manifestação não é o caminho, em vez de manter a calma, coloca em questão a paz social.» 
 André Couto, aqui.
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Passos Coelho ama-te



Vem da Ana Cristina e esta é daquelas correntes que não pode mesmo ser quebrada! Camaradas Bloggers, obedecei ao que é pedido na imagem e sereis felizes. Se não para sempre, pelo menos durante uns tempitos.

Luís   /   Helena   /   Tomás  /  Xico   /  Maria   /   Filipe  /   Paula  /   Maria de Jesus  /   Folha Seca  /   Raimundo

13.4.12

Antes que o dia acabe



Hoje é o Dia do Beijo...
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Paraskevidekatriafobia



Paraskeví (Παρασκευή = 6ª Feira) / Dekatreís (δεκατρείς = 13) / Phobía (φοβία = fobia)

São várias as teorias e as origens históricas apontadas para justificar a má reputação da sexta-feira 13, dia em que os mais ajuizados nem deviam sair de casa.

O próprio número 13 já é aziago, ao ponto de muitos hotéis não terem 13º andar (chamam-lhe 12A ou omitem-no, pura e simplesmente), nem quartos com esse número.

Em 2012, há três sextas-feiras 13. Não me lembro do que se passou na de Janeiro, temo a que virá em Julho e, quanto à de hoje, estamos conversados: só 10,4% dos deputados desta Nação votaram contra um Tratado vergonhoso que:
 Shame on us, portugueses e europeus, que não fizemos / não fazemos tudo o que se impõe para que isto acabe! 
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Não, Portugal não é a Grécia

Dito por aí (12)

@João Abel Manta

«Mas, se a assassina receita da "troika" chegar a Espanha, também teremos uma alteração do ambiente político na Europa. Os espanhóis não têm a brandura dos portugueses. Estão mais próximos dos gregos, sendo, ao contrário destes, uma potência económica e política na Europa. Ali as greves gerais são a sério. E com um desemprego a aproximar-se dos 25%, a contestação será a doer. Pode aguentar a Europa uma Espanha a ferro e fogo? Duvido.» 
Daniel Oliveira, Espanha por um fio 

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«Há muito que não se via um primeiro-ministro seguir tão de perto a liturgia pascal, do calvário à crucificação. Em termos simbólicos, claro - mas em política nada está mais perto da realidade do que os símbolos.»
Manuel Maria Carrilho, Passos em falso 

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«Nada disto conta para os tecnocratas de serviço. Fizeram do encerramento da MAC um remake pífio da novela das explicações para bombardear o Iraque: primeiro tinha partos a mais, depois tinha partos a menos, depois não é boa prática manter uma unidade monofuncional devendo ser integrada num hospital geral.» 
José Manuel Pureza, A racionalização

Equilíbrio instável



(Book Igloo por Miler Lagos)
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12.4.12

Desmemória


Estoy leyendo una novela de Louise Erdrich. A cierta altura, un bisabuelo encuentra a su bisnieto. 

El bisabuelo está completamente chocho (sus pensamientos tienen el color del agua) y sonríe con la misma beatífica sonrisa de su bisnieto recien nacido. El bisabuelo es feliz porque ha perdido la memoria que tenía. El bisnieto es feliz porque no tiene, todavía, ninguna memoria. 

He aquí, pienso, la felicidad perfecta. Yo no la quiero.

Eduardo Galeano, El libro de los abrazos.
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Os donos




Donos de Portugal é um documentário sobre cem anos de poder económico.
O filme retrata a protecção do Estado às famílias que dominaram a economia do país, as suas estratégias de conservação de poder e acumulação de riqueza. Mello, Champalimaud, Espírito Santo – as grandes famílias cruzam-se pelo casamento e integram-se na finança. Ameaçado pelo fim da ditadura, o seu poder reconstitui-se sob a democracia, a partir das privatizações e da promiscuidade com o poder político. Novos grupos económicos – Amorim, Sonae, Jerónimo Martins – afirmam-se sobre a mesma base.
Quando a crise desvenda todos os limites do modelo de desenvolvimento económico português, este filme apresenta os protagonistas e as grandes opções que nos trouxeram até aqui.

Donos de Portugal é uma produção no âmbito do Instituto de História Contemporânea para a RTP 2.

Donos de Portugal é um documentário do Jorge Costa, baseado no livro homónimo de Jorge Costa, Cecília Honório, Luís Fazenda, Francisco Louçã e Fernando Rosas (Edições Afrontamento, 2010).

Estreia na RTP2, na noite de 24 para 25 de Abril, (previsivelmente) à 1h30. 
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A estrela amarela ao peito ficará para mais tarde



Só se ouvem «promessas» de proibições e mais proibições, num momento em que os portugueses precisam de tudo menos de ameaças, multas e grilhetas. Para pior, já basta o resto!

Entretanto, acabo de saber que a «Maternidade Alfredo da Costa cancela visita de António Costa», porque «a direcção clínica recebeu ordens da ARS, com ameaças de processo disciplinar, caso o autarca fosse recebido».

Resta-me dizer, como Manuel António Pina, a quem roubei o título deste post, «a estrela amarela ao peito ficará para mais tarde».
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Desenhar a liberdade numa cela de Caxias



(Pintura de Mário Silva, feita em Caxias, em 1962)

Regresso à Crise Académica de 1962 porque João Gaspar, editor-executivo do Jornal Universitário de Coimbra «A Cabra», me enviou agora este texto. Faz parte de um número especial daquela publicação – «50 anos de Dia do Estudante»  – que eu já tinha referenciado.


Em 62, estudantes disseram que não ao regime, vaiaram o reitor e ainda desenharam a democracia numa cela de Caxias. Esta é a história de gente que se fez candeia no meio da desgraça.
 
Quatro da manhã e o ambiente na sala é tenso. O receio espalha-se pelos olhos dos presentes e não há espaço para muitas falas. Os colegas que manifestavam apoio ao cerco na rua já haviam sido dispersados brutalmente pela polícia. 

Vão espreitando à janela. Lá fora, já conseguem ver as carrinhas da PSP. O cerco aperta-se e as movimentações sugerem que a barricada vá ser arrombada. Reúnem-se todos na sala e sentam-se no chão à espera de ouvir o estrondo de cadeiras e mesas a cederem à entrada da polícia de choque. São uns gorilas, homens de negro dos pés à cabeça, de capacete, armados até aos dentes, e que aparecem em tantas histórias como carrasco de rebeldias durante o Estado Novo.

O coração apressa-se e o estrondo ouve-se. A barricada é abatida pela força e os polícias de preto apressam-se a chegar à sala onde 150 estudantes estavam sentados. Num impulso repentino, imposto pelo medo do embate, meia dúzia de estudantes levanta-se e começa a cantar “A Portuguesa”. Todos os outros imitam o gesto. No meio, vozes tremelicam de tantos nervos. A polícia de choque hesita e fica sem saber o que fazer. Pára diante dos estudantes, de pé, a entoarem o hino nacional. O cântico acaba e os polícias começam a encaminhar os estudantes para fora do Palácio dos Grilos, que não oferecem resistência. Evita-se a pancada. O comandante da polícia, reconhecendo, entre os estudantes, Mário Silva, dirige-se a ele:

-Estão aqui todos?

-Sim, senhor comandante.

Mentia. Uns quantos tinham-se escapulido para o sótão. Mostram-se documentos e vai toda a gente em carrinhas para o quartel da Guarda Nacional Republicana, na Avenida Dias da Silva. 

Os cerca de 150 estudantes fazem fila à espera de saber o que os espera. São identificados e revistados um por um. Tiram-se fotografias e impressões digitais. A certa altura, aparece o implacável inspector Sachetti, conhecido de tantos que lá estavam. Põe uma secretária e pede para que se faça uma fila com os estudantes. Fica à frente, a separar trigo de joio. Na secretária, rodeado de papéis com o carimbo da PIDE, Sachetti faz perguntas breves e curtas, num ar de satisfação. Finalizado o interrogatório, escolhe para que lado vai o estudante. Chega a vez de José Augusto Rocha, velho conhecido de Sachetti, de tantas vezes que foi exigir a libertação de colegas presos. Sachetti sorria em traços largos, tamanho era o ódio que tinha a José Augusto Rocha. Emanava a perfumes, como sempre. Um cheiro imundo. Impecavelmente vestido, careca, cara redonda, sem pescoço, entroncado. Eis Sachetti e José Augusto Rocha, frente a frente. 

-Finalmente apanhei-o! – diz, triunfal.

José Augusto Rocha, não se intimida com Sachetti, que até já tinha prendido dois dos seus próprios sobrinhos.

-Veremos no futuro… 

Nessa madrugada de 19 para 20 de Maio, vai na primeira carrinha para Caxias. Juntam-se a ele mais 38, enquanto quatro raparigas ficam presas na sede da PIDE em Coimbra. Os restantes estudantes saíam, em liberdade.


Um abalo sem-medo

Não foi preciso 62 para José Augusto Rocha ganhar a consciência de que aquela liberdade tinha muito pouco disso mesmo. Na sua cabeça rodopiavam desde muito cedo os ensinamentos de António Sérgio. Ainda estudante liceal em Viseu, devorou os oito volumes de ensaios do filósofo português. O neorrealismo português, de Manuel da Fonseca a Carlos de Oliveira, era também de leitura obrigatória. Percorriam-se livrarias à procura de obras escondidas, trocavam-se depois à socapa, distribuíam-se panfletos e ensaios franceses rodavam de dono. Os olhos perdiam palas. 

11.4.12

5 anos em Brumas



Este blogue nasceu há cinco anos, ando por aqui há um lustre! Muito pouco para quem tem a minha idade, uma eternidade se olhasse por cima do ombro e tentasse rever em diagonal o que por aqui se passou. Mais vale não o fazer, por muitas e variadas razões. 

Vou continuar porque sim. Antes de mais porque gosto, também porque o número crescente de leitores me faz pensar que dou a isto algum préstimo, nem que seja como «inimiga de estimação», «sempre detestável», como alguém simpaticamente me classificou, há poucos dias, num blogue (considerado) de direita. 

Muito obrigada a todos os que passam por esta casa, em especial ao batalhão que aqui chega via Facebook. Continuem, mas não venham com esperança de encontrar conforto em grandes certezas ou em apelos e louvores a «consensos alargados». Dificilmente os encontrarão nesta botica...

La nave va! 
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No tempo em que as encíclicas abalavam o mundo



Quando pensei escrever este texto, estava convencida de que se comemoraria hoje o 50º aniversário da encíclica Pacem in Terris. Adiantei-me um ano, já que João XXIII só a lançou em 11 de Abril de 1963, mas aqui fica um apontamento. 

O Concílio Vaticano começara seis meses antes, as expectativas quanto ao mesmo eram muito grandes e, em plena Guerra Fria, este texto veio defender que «os conflitos entre as nações devem ser resolvidos com negociações e não com armas, e na confiança mútua». Foi um verdadeiro grito expressamento lançado a todos os homens «de boa vontade» poucos meses depois da crise dos mísseis em Cuba e com o Muro de Berlim nos primeiros anos de vida. 

Em Portugal, já em plena guerra colonial e cada vez mais acossado internacionalmente por esse motivo, a P.in T. foi um bálsamo para a oposição e mais uma preocupação para o regime. Na sua obra sobre Salazar (vol. V, p. 477), Franco Nogueira viria a escrever: «Sem o pretender, a Pacem in Terris agrava o desarmamento moral do Ocidente e enfraquece-o no plano ideológico e dialéctico. Do facto, sofre reflexos a posição portuguesa.» E, clarividente como sempre, Salazar anotou no seu diário, seis dias depois da publicação da encíclica: «João XXIII escancarou as janelas do Vaticano às tempestades do mundo.» 

Com toda a razão, diga-se. Nunca se saberá como teria evoluído o Concílio Vaticano, e a própria Igreja, se João XXIII não tivesse morrido dois meses depois. O travão veio a seguir, as ditas janelas foram-se fechando. 

P.S. – Também num 11 de Abril, e precisamente para comemorar o primeiro aniversário da publicação da P.inT., foi fundada, em Portugal, a Cooperativa PRAGMA
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Pedimos desculpa pela interrupção, a ditadura segue dentro de momentos



Em Espanha, aqui mesmo ao lado, tão perto do ministro Miguel Macedo.  

«En clara referencia a las movilizaciones estudiantiles de Valencia y el movimiento 15-M, con esta legislación podrían ser condenados por atentado todas las personas que acudan a las movilizaciones de los indignados, que suelen llevarse a cabo sin previa notificación a la Delegación de Gobierno.» 

Ainda melhor, agora em El Mundo:  
«Hay que robustecer la autoridad legítima de quien legítimamente tiene la exclusividad de la actuación con fuerza, que son la Policía Nacional, la Guardia Civil y las policías autonómicas -ha proclamado Fernández Díaz-, porque no se puede estar pasivamente ante actuaciones de las de algunas personas que desprecian, injurian y desobedecen a las Fuerzas de Seguridad.» (O sublinhado é meu.)
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Cuidado nos elevadores!



A propósito disto, evidentemente.

Mais cartas aqui.
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Encerramento de maternidades – encantos da alternância

10.4.12

A história de uma cidade não se escreve com cifrões



A memória histórica de um povo, ou de uma cidade, não é tecida apenas por monumentos que recordam acontecimentos políticos gloriosos e por edifícios onde alguns foram vítimas da repressão fascista e que se tenta, quase sempre em vão, que sejam preservados como testemunhos tangíveis de um passado que importa não esconder. Também há casas, ruas e instituições com um tal peso afectivo e simbólico que não devem ser «apagadas» por simples cálculos contabilísticos de mangas-de-alpaca engravatados. 

Ouvi hoje Carlos Monjardino, neto do fundador da Maternidade Alfredo da Costa, sublinhar que esta é «um ex-libris de Lisboa e da Saúde em Portugal». É bem verdade. E este aspecto, para além de tudo o que já foi dito, não pode, e não deve, ser pura e simplesmente desprezado. Nascer não é um acto banal. Que ali tenham vindo a este mundo milhares e milhares de portugueses, durante 80 anos, que ali se tenha contribuído para uma diminuição drástica da taxa de mortalidade infantil neste país, que naquele local e com as pessoas que lá trabalham estejam reunidas as condições para que prossiga um trabalho de excelência (ainda ninguém disse o contrário) só pode ser indiferente para quem nem respeita o passado nem olha para o futuro por cima da espuma dos dias e dos cifrões. 

Memória é também afecto. Por isso esta tarde se falou de um «abraço» àquele mítico quarteirão de Lisboa. Se há momentos em que os portugueses precisam que não lhes cortem as raízes a que se agarram, sem motivos de força razoável e maior, este é certamente um deles. 
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O homem é livre quando quer




Eduardo Galeano e Jean Ziegler
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O campo minado



A não perder, um texto de Viriato Soromenho-Marques a propósito da (inacreditável) entrevista dada por Vital Moreira ao jornal i. 

«É impossível não sentir uma mistura de simpatia e pena por A. J. Seguro. Por duas razões. Primeiro, tem um chefe de bancada no Parlamento Europeu que repete - com um absoluto vazio de pensamento próprio sobre uma crise europeia que manifestamente não compreende - os comunicados de Vítor Gaspar sobre como o País se vai redimir empobrecendo. Segundo, a entrevista de VM é um sintoma claro de que Seguro jamais será o líder da oposição que o País precisaria, enquanto caminhar no campo minado pelo "socratismo" em que o PS se transformou.» 

Na íntegra aqui.
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A política como farsa



Na sua crónica de hoje no JN – Entre a peste e a cólera –, Manuel António Pina resume, mordazmente, as trapalhadas governamentais da semana passada sobre subsídios tirados e a repor não se sabe quando nem como, secretismo no cancelamento de reformas antecipadas e regresso sebastiânico (a expressão é minha) aos mercados. Também não poupa o PS e as suas «violências» em votos e tratados complementares. 

E termina com a frase a que eu queria chegar: «E nós, portugueses? Nós, portugueses, não somos chamados ao assunto porque esses assuntos não nos dizem respeito.» 

Não colhe o argumento do voto democrático numa maioria que governa como justificação para tudo o que está a passar-se, não nas nossas costas, mas bem dentro das nossas casas e das nossas algibeiras. O caso da suspensão das reformas antecipadas, explicado ontem por Passos Coelho, em Maputo, com um largo sorriso inaceitável, é neste plano exemplar. Como vários comentadores, mesmo afectos ao PSD, já vieram observar, havia diversas maneiras de evitar a corrida aos centros da Segurança Social sem lesar o respeito pelos cidadãos e pelos parceiros sociais. Não foram utilizadas e isso é grave na medida em que acções paradigmáticas como esta «tornam o parlamentarismo e a democracia formal sem utilidade para as camadas afectadas (…) e transformam a política em democracia numa farsa», como bem observou Jorge Nascimento Rodrigues, em Nota hoje publicada no Facebook: 

«A política das medidas de surpresa tem circunstâncias e casos em que é indispensável – face aos mercados financeiros e em circunstâncias de guerra, por exemplo. Fora isso, as medidas "secretas" lançadas de surpresa, particularmente em relação à população, têm, em democracia, um problema crítico: encurtam a margem de manobra de contenda e compromisso parlamentar, tornam o parlamentarismo e a democracia formal sem utilidade para as camadas afectadas por tais medidas e transformam a política em democracia numa farsa. Abrem espaço à política seguida por outros meios a partir do momento em que a "fadiga" atinge tais camadas. É uma questão de tempo. Se o Parlamento ou outras instituições de contrapeso da democracia não corrigirem a trajectória dos que acreditam na legitimidade de tal percurso, julgando poupar no farelo.» 

P.S. - Ler: Corroer o pacto social (Medeiros Ferreira). .

9.4.12

Um êxodo imparável



Há mais de 56 mil portugueses inscritos na EURES (Portal Europeu de Mobilidade Profissional), ou seja, que procuram trabalho em países da União Europeia e na Suíça (4.700 novos nos últimos dois meses). 

Sabendo-se que mais de metade dos candidatos ainda não fez 35 anos, que 34,1% tem pelo menos o bacharelato e 27,6% o ensino secundário, e que estamos apenas a falar de quem se inscreveu nesta rede europeia, deixando portanto de lado todos os que procuram por outros meios, e, sobretudo, que não se está a contabilizar os muitos milhares que partem para Angola, Brasil, etc., etc, só se pode concluir que estamos perante uma terrível sangria, da qual vamos levar muito tempo a recompor-nos, sem sabermos como nem quando! Com números, vê-se melhor a gravidade da situação. O país gastou fortunas na educação destes milhares de pessoas, precisa do know how que elas representam e está a deitá-las pela borda fora. 

A mobilidade é normal e é um bem dentro de certos limites e quando não se trata de uma fatalidade imposta, planeada, como é o caso neste momento. Assim, é cruel para as «vítimas» e uma grave irresponsabilidade temerária dos «vitimários». 

 (Fonte)

«Nação valente e imortal»



A não perder, a crónica de António Lobo Antunes, no último número da Visão

«Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.» 

Na íntegra AQUI.
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Excelente texto de Rui Tavares


... no Público de hoje. Ainda não tinha lido esta crónica quando publiquei o post imediatamente anterior a este ou tê-la-ia certamente citado. 
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O PS e a síndrome de Estocolmo



O Partido Socialista põe dramatismo no apelo lançado à maioria para que aprove a adenda que propôs ao novo pacto orçamental europeu, mas mantém que vai votar a favor mesmo que a referida adenda não seja tida em conta. 

Isto, apesar de Mário Soares ter vindo a público afirmar expressamente «há rumores de que o Governo português quer que o nosso Parlamento ratifique, quanto antes, o tratado para continuar a ser "o melhor aluno da senhora Merkel"» e que espera «que reflicta e arrepie caminho, para bem dos portugueses mais desfavorecidos»; e apesar de vários deputados [socialistas] ameaçarem não respeitar a disciplina de voto, como João Galamba que «defendeu esta semana que o texto é inconstitucional, por considerar que põe em causa a soberania nacional»

O PS está refém de fantasmas que o sequestram e esses fantasmas chamam-se Merkel, Troika e Comissão Europeia. Fabrica uma estratégia ilusória para se proteger e isso impede-o de ver claramente a realidade, de medir os perigos e de perder o medo de se libertar. Normalmente, estas histórias não acabam bem. 

Andam uns turistas pelo Atlântico a comemorar o centenário do naufrágio do Titanic. Espero que, em 2112, os nossos netos e bisnetos não organizem excursões ao Largo do Rato. 
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A Es.Col.A do Alto da Fontinha no Porto



Faz amanhã um ano que foi ocupada e o processo está longe da normalidade a que tinha direito. 

Toda a informação no blogue da Escola, onde foi divulgado, há alguns dias, o seguinte texto: 

Sexta-feira, 30 de Março de 2012 
Es.Col.A do Alto da Fontinha 

CARTA ABERTA 

A promessa de suspensão do despejo do Es.Col.A revelou-se um logro. Politicamente forçada a dialogar com os ocupantes da antiga Escola Primária do Alto da Fontinha, a Câmara Municipal do Porto (CMP) mais não queria do que anunciar que o despejo se mantinha, embora adiado. Em reunião com dois delegados da Assembleia do Es.Col.A, os representantes da câmara exigiram que o projecto assinasse a sua sentença de morte, traduzida num contrato de aluguer com fim em Junho. A continuidade imediata do Es.Col.a dependeria da assinatura desse papel. 

Recapitulando: a 10 de Abril de 2011, um grupo de pessoas ocupou a antiga escola primária do Alto da Fontinha, devoluta e abandonada há mais de cinco anos pelo município que a devia manter. Depois de um mês de ocupação do espaço e já com inúmeras actividades a decorrer, a CMP mandou a polícia despejar violentamente os ocupantes e emparedar o edifício. Depois de um longo processo negocial, o Es.Col.A voltou à Escola da Fontinha onde se mantém até hoje, com a indiferença da CMP. 

Esta farsa é, para nós, inaceitável, tal como o é o despejo em si - seja agora, em Junho, ou em qualquer altura. Perante quem tem, repetidamente, falhado no cumprimento da sua própria palavra e que entende o ultimato como forma de negociação, a posição do Es.Col.A só pode ser a de não aceitar a decisão de despejo. Fazê-lo seria desistir do sonho com que partimos para esta aventura, o de transformar as nossas vidas com as nossa próprias mãos, ensinando e aprendendo com quem se cruza connosco, nas ruas da Fontinha. Porque o Es.Col.A, muito mais do que uma escola, é um laboratório dum mundo já transformado, resistiremos. 

Precisamos do sentido solidário de toda a gente que se identifica com o projecto. Em todo e qualquer lado, que a ocupação e a libertação de espaços sejam a resposta generalizada ao ataque às iniciativas de emancipação popular dum sistema que prefere a propriedade, mesmo que abandonada, ao usufruto, mesmo que colectivo. 
Que a moda pegue! ai, ai 

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Um vídeo que acaba de ser lançado conta a história de um ano de trabalho:



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A ler, este texto de Nuno Ramos de Almeida: Uma escola okupada no coração do Porto

8.4.12

Escopro de vidro



Estou aqui construindo o novo dia
com uma expressão tão branda e descuidada
que dir-se-ia
não estar fazendo nada.
E, contudo, estou aqui construindo o novo dia.

Porque o dia constrói-se: não se espera.
Não é sol que deflagre num improviso de luz.
É um orfeão de vozes surdas, um arfar de troncos nus,
o erguer, a uma só voz, dos remos da galera.

Cantando entre os dentes
um refrão anidro
abro linhas quentes
com um escopro de vidro.
Abro linhas quentes
sem tremer a mão,
com um escopro de vidro
de alta precisão.

António Gedeão
 
in «Máquina de Fogo», 1961
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Catastroika

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Dos autores de «Debtocracia».
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Por falar em ovos



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Para Portugal, o tempo está a esgotar-se



Texto de Costa Lapavitsas e Nuno Teles, (Público, 8/4/2012 (sem link

No mês passado, o ministro das Finanças português declarou em Washington que “o ajustamento será mais rápido e bem sucedido do que o previsto no programa [da troika]”. Animado pela redução do défice externo no último trimestre do ano passado, Vítor Gaspar reafirmava assim a sua fé nas actuais políticas do seu governo – pouco importando que esta redução do défice se tenha devido a uma queda das importações causada pelo colapso do consumo e investimento internos e a um crescimento das exportações para o espaço não europeu que beneficiou da desvalorização do euro durante o mesmo período.

No entanto, a euforia governamental foi de curta duração. Através dos dados da execução orçamental, ficámos a saber que embora a carga fiscal tenha sido brutalmente aumentada, o aprofundamento da recessão conduziu a uma queda das receitas fiscais em 5,3% durante os dois primeiros meses de 2011 face ao período homólogo. Os números do desemprego, que atinge actualmente 15% segundo o Eurostat, ultrapassam o que foi estimado para este ano pelo Governo. As metas definidas para o défice orçamental parecem difíceis de atingir, ao mesmo tempo que a dívida atingiu já os 110% do PIB e que os juros no mercado secundário de dívida pública a dez anos registam valores em torno dos 12%, acima dos 8% verificados aquando do pedido de “resgate” externo. É, pois, cada vez mais consensual a necessidade de um segundo programa de financiamento e a provável renegociação da dívida pública com o sector privado.

Enganam-se, contudo, aqueles que vêem a nova “ajuda” europeia e o cancelamento de parte da dívida (promovida pelos credores, como sucedeu no caso grego) como um balão de oxigénio para a economia portuguesa. A Grécia funciona, mais uma vez, como uma “bola de cristal” onde é discernível a evolução futura da economia portuguesa. Quando a crise se iniciou, em 2010, a dívida soberana grega ascendia a 300 mil milhões de euros e era detida sobretudo por credores privados, encontrando-se enquadrada pelo ordenamento jurídico grego. Depois de dois anos de resgate, a Grécia viu a sua dívida pública total aumentar para 370 mil milhões de euros, dos quais os privados detêm apenas 200 mil milhões. Com a actual reestruturação, os credores privados foram forçados a aceitar perdas nominais de 53,5% nos seus títulos. As suas perdas serão compensadas através de um conjunto de pagamentos imediatos, entendidos como indemnizações necessárias ao acordo voluntário. Por outro lado, uma vez que uma parte substancial da dívida privada é detida pela banca grega, o Estado será obrigado a um processo de recapitalização num montante total de cerca de 50 mil milhões de euros – os quais acrescem à dívida pública. Conclusão: tendo em conta o novo endividamento junto da troika, a redução real da dívida grega é de menos do que 10% do PIB – com a diferença que os novos títulos de dívida detidos por privados passam a ser protegidos pela lei britânica. Tudo isto, claro, a par de novas doses de austeridade, permitindo concluir que o futuro que a Grécia tem pela frente não é mais do que o aprofundamento da depressão e o intolerável agravamento dos seus custos sociais.

Face à previsível evolução da situação na Grécia, ao impacte negativo sobre o nosso PIB da já notória recessão europeia e aos sinais claros de que o programa que tem vindo a ser imposto pelo actual Governo está a falhar os objectivos, Portugal não pode perder mais tempo. Este mês será publicado um livro, intitulado Crisis in the Eurozone (Verso Books), que reúne o trabalho que temos vindo a desenvolver há mais de dois anos sobre a crise europeia no quadro do grupo de investigação Research on Money and Finance. Nesse livro, procede-se a uma reflexão em torno de quais as saídas possíveis, e quais as mais favoráveis, para a periferia europeia – começando desde logo pela Grécia, cujo caso antecipa e serve de modelo para Portugal. Defende-se uma reestruturação da dívida liderada pelos estados devedores, assente na participação democrática (tal como tem vindo a ser efectuado através dos processos de auditoria cidadã), por forma a reduzir a dívida para níveis sustentáveis do ponto de vista financeiro, económico e social. Sabemos que este caminho implicará, provavelmente, a saída do euro – e sabemos também que esse processo não está isento de custos e riscos. Tal saída forneceria, contudo, novos instrumentos para a recuperação económica, incluindo a possibilidade de desvalorização da moeda (promovendo o equilíbrio externo) e de adopção de uma política monetária autónoma financiadora de uma política orçamental de combate à crise. Face à certeza de uma política europeia desastrosa para a periferia, agora reforçada à luz dos novos acordos, esta via é a única susceptível de colocar os países da periferia europeia numa trajectória de recuperação económica, se adequadamente planeada e implementada de modo a minimizar os riscos e custos da transição monetária. Isso implica um controlo público efectivo sobre a banca, a introdução de controlos de capitais, uma reforma fiscal profunda e a prossecução de uma política industrial activa – ou seja, uma profunda alteração da actual correlação de forças sociais. A alternativa contra a qual este cenário deve ser avaliado é o actual empobrecimento sem fim, a perda de soberania nacional e a regressiva redistribuição do rendimento. Um caminho no qual, aliás, o risco de uma saída caótica do euro, com uma economia arrasada e em total ruptura, não cessará de aumentar. Primeiro para a Grécia, depois para Portugal.  

Costas Lapavitsas é professor de Economia da School of Oriental and African Studies (SOAS), membro do RMF (Research on Money and Finance). Nuno Teles é doutorando em Economia na SOAS, membro do RMF.