15.1.13

Cuidados de saúde - Racionalizar ou racionar?


Um texto de Isabel do Carmo, enviado pela autora para divulgação neste blogue. (Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, Dezembro de 2012.) 

A reflexão sobre a racionalização da medicação e dos meios auxiliares de diagnóstico na saúde deverá ser feita separando as águas de duas motivações de origem diferente. De um lado estão as motivações economicistas enquadradas na pressão para que se gaste menos no sector da Saúde integrada em serviços públicos. Com outra origem está a necessidade de racionalização para que o espírito do consumismo não domine também os comportamentos nos cuidados de Saúde e o mercado não esteja à mercê da pressão da indústria farmacêutica, que pode levar a gastar mais e mais caro.

Esta discussão apanha-nos em plena crise e em face de imposições externas. Embora no passado as questões da racionalização se tenham posto ao nível internacional e nacional, são estas crises que acabam por impor e obrigar a uma discussão sob o efeito da necessidade.


Normas de orientação clínica

De acordo com o memorando da Troika, logo na sua primeira versão, se estabelecia a obrigatoriedade de estabelecimento de Normas de Orientação Clínica (NOC’s). Estabelecia-se também que houvesse um Centro de Facturas onde seria possível traçar para cada médico o perfil de receituário. E na sequência destas disposições ameaçava-se com “sanções” os médicos cujo comportamento de prescrição levantasse censura. A informatização do receituário permitiu logo detectar alguns casos de suspeita criminal, que provavelmente sem meios informáticos poderiam ter escapado. Ainda bem que foram detectados. No entanto, estamos para ver em que é que consistem as “sanções”, a vigilância e os critérios adoptados. Os médicos já começaram a receber por SMS o resultado do apuramento da quantidade e da qualidade que receitam. Se isso puder servir para auto-avaliação também é bom. Mas ficaremos por aí ou tudo isto pode acabar em Big Brother is watching you?

As NOC’s foram organizadas e bem organizadas pela Direcção Geral de Saúde e pela Ordem dos Médicos. Foram elaboradas por grupos de clínicos de cada especialidade, personalidades credíveis e com experiência. Depois de elaboradas foram escrutinadas junto de outros clínicos independentes. Foram discutidas em vários fóruns tanto nos cuidados primários, como nos hospitais, como em jornadas e congressos científicos. Foram objecto de muita discussão. Basearam-se naquilo que já eram protocolos internacionais (as “guidelines” para determinada doença) e que têm sido adoptadas pelas sociedades científicas nacionais. Algumas já estavam estabelecidas pela própria Direcção Geral de Saúde na base do trabalho de grupos de peritos. Os critérios económicos foram tidos em conta, mas não ditaram opções de fundo. De um modo geral foi adoptado “o mais barato entre o melhor”, ou, na árvore de decisões, começar pelo mais barato e perante os resultados clínicos manter ou passar ao mais caro. Por outro lado, em muitos casos foi dada flexibilidade para o médico fazer a opção. Os critérios foram sensatos. No entanto, ainda não começaram as auditorias para ver localmente a aplicação das regras, tendo apenas havido esboços para ensaiar essa execução. Se as auditorias se transformarem em policiamento e fiscalização sem critério e arbitrárias, feitas por pessoas sem qualificação para o efeito, serão um rastilho de conflitos para uns e de medo para outros, levando com certeza à degradação dos serviços. Nesse caso, as NOC’s, que foram aceites com procedimentos correctos e sem hostilidade, transformar-se-ão numa imposição hostil. De igual modo, os plafonds de custos por Agrupamentos de Saúde se forem interpretados para o conjunto dos Centros e dos médicos, entendendo que uns receitam mais para umas patologias e outros para outras, podem ser cumpridos de forma mais ou menos pacífica. Se os médicos passarem a entender que são contabilizados individualmente passarão à hostilidade ou ao medo ou aos dois. E o prejudicado será o doente.

Há portanto quem tema que estas NOC’s que podem ser úteis acabem em conflito e sanção, porque foram estabelecidas por via da pressão económica. Vamos ver a sequência dos acontecimentos. E não está posto de lado que, perante a não eficácia da redução dos custos a Troika proponha revisão das NOC’s…

No entanto são de outra ordem as questões que se têm levantado relativamente à racionalização versus racionamento na medicação.


Os pesos pesados da medicação

Os problemas de maior peso que se colocam dizem respeito às medicações hospitalares para determinadas patologias. Estão em causa três grupos de fármacos de dispensa hospitalar: os medicamentos oncológicos, os que dizem respeito ao HIV-SIDA e os chamados “biológicos” que se aplicam sobretudo a doenças reumatismais. Há ainda duas outras patologias com medicação hospitalar cara, mas mais restricta: a paramiloidose (“doença dos pezinhos”) e a esclerose múltipla. São estes os medicamentos que representam grandes custos, aqueles em que a inovação se traduz no preço e em relação aos quais os doentes e as famílias não podem aceitar racionamento. O que se pode perguntar é se neste momento o racionamento implícito já está a ser praticado sem que isso seja explicitado e discutido. É o que parece existir, segundo a opinião do recente parecer da Comissão Nacional de Ética (Setembro 2012) quando diz “o ponto está em que se passe do actual racionamento implícito – que muitos defendem há décadas como eticamente e politicamente inaceitável (Sulsmay, 1992) e que está ao sabor de contingências múltiplas, por vezes unilaterais, dos clínicos ou outros decisores hospitalares” propondo um “racionamento explícito e transparente, em diálogo com os cidadãos”.

Não podemos afirmar se há racionamento implícito nos vários estabelecimentos. Podemos afirmar, de acordo com as informações do Centro Hospitalar Lisboa Norte (Hospital de Santa Maria e Hospital Pulido Valente) (CHLN) que tem fornecido este tipo de medicamentos para doentes de várias origens e de várias zonas do país. Por outro lado, o CHLN tem um perfil de encargos económico-financeiros diferente de todos os outros centros hospitalares do país. A estrutura de custos do CHLN mostra que a redução do orçamento se fez em sucessivas reduções da fatia correspondente a salários, mesmo sem fazer despedimentos e não à custa da redução nos medicamentos e outros consumos clínicos. Significa isto que no CHLN não houve racionamento e que os doentes que lá se depararam com aquelas patologias foram tratados de acordo com o que de melhor está indicado e disponível no nosso país. As reduções em salários fizeram-se à custa de redução de horas extraordinárias e de não contratação de novos funcionários das várias categorias para substituir os reformados e os médicos desviados para os privados e para os público-privados. Isto vai prejudicar os doentes? Vai. Mas em contrapartida não foram tocados os medicamentos. Há racionamento noutras instituições? Pode pôr-se a hipótese, podem evocar-se casos concretos, mas é uma questão para falar só com dados gerais e claros.

Em relação a alguns destes medicamentos hospitalares pode colocar-se a hipótese de optar pelo não uso quando a sua administração corresponde já a um “encarniçamento” em fase final de vida, sem benefício para o doente. No entanto esta discussão e decisão é para ser feito em meio clínico e não com o próprio doente ou a família. Só genericamente e fora dos casos concretos poderá ser feita entre o publico em geral.


Os medicamentos da consulta

As questões que se põem para os medicamentos receitados na consulta em ambulatório são outros. Qualquer dos pesos pesados hospitalares não são receitados em ambulatório. Na consulta figuram os grandes grupos terapêuticos que também vão pesar no orçamento mais pela quantidade do que pelo custo por unidade. Os grandes grupos receitados são: tranquilizantes e antidepressivos; analgésicos, particularmente os anti-inflamatórios; normalizadores da tensão arterial; anticolesterolémicos; antidiabéticos; antibióticos e protectores do estômago.

Não há dúvida, nem é discutível, que quem tem hipertensão continuada, diabetes ou uma infecção por bactérias deve tomar respectivamente anti-hipertensores, antidiabéticos e antibióticos. É confrangedor saber que populações africanas, mesmo em países ricos, não têm acesso gratuito a estes medicamentos.

Nestes casos as Normas de Orientação Clínica, que foram precedidas de longa data por protocolos de discussão nacional e internacional, têm em atenção os custos, a eficácia e, no caso dos antibióticos, a defesa contra as resistências bacterianas, não utilizando os mais novos e por sinal mais caros, que deste modo podem ficar “queimados” criando resistências bacterianas. Esta última questão tem levantado mais debate, mais formação e, eventualmente mais resistências, que desta vez não são das bactérias. É também necessário explicar, por meios de grande divulgação, quando possível oficiais, que os vírus não se destroem com antibióticos e que portanto as gripes sem complicações não devem ser tratadas com esse medicamento, mas com simples antipiréticos, para a febre e o mal-estar. Deve dizer-se, no entanto, que esta discussão e esta informação devia ser aberta ao público em geral pelos meios oficiais e usando os meios públicos – de forma mais restricta fazendo sessões nos centros de saúde, de forma mais alargada através da televisão e da internet.

Também em relação aos outros grandes grupos farmacêuticos haverá que fazer discussão e esclarecimento. Em relação aos medicamentos psicogénicos haveria que explicar que não se pode confundir antipsicóticos, antidepressivos e tranquilizantes. Os primeiros são absolutamente necessários e não deveriam ter descido no grau de comparticipação que tinham. Os antidepressivos são muito consumidos em Portugal, porque provavelmente a situação actual está a gerar muito mais depressões e servem para aliviar um grande sofrimento, embora tenham que ser receitados e tomados com critério. Quanto aos tranquilizantes, são o SOS duma população em pânico...Muitas destas medicações poderiam ser substituídas por psicoterapias, se houvesse recursos suficientes no Serviço Nacional de Saúde, mas não há e é pena.

Para além destes medicamentos, todo um largo campo de receituário é discutido em termos de eficácia e custos. Grupos americanos, ingleses e recentemente franceses têm posto em causa a eficácia de alguns medicamentos que são líderes de venda. Não desconhecemos que a indústria farmacêutica cumpre o seu papel. O lançamento de novas moléculas é muito criterioso, prolongado e custoso. Na apresentação do medicamento a indústria não mente, mas destaca os resultados que lhe são favoráveis. Há novas moléculas que são apenas pequenas transformações das anteriores. Mais uma vez é de destacar o papel da BIAL na indústria nacional, com uma nova molécula de facto e outras que estão em curso.

Quanto aos chamados “suplementos alimentares” não deixam de pulular em farmácias e para-farmácias, sem qualquer controlo, constituindo um negócio de milhões.

Nós, médicos, somos influenciados pela indústria, que é a nossa quase única fonte de informação, uma vez que os Estados se demitiram dessa função.


A discussão pública 

A discussão relativa aos custos do receituário, tal como em relação aos meios auxiliares de diagnóstico, devia ser pública e feita a vários níveis. Mas deve destacar-se que está a ser feita sob ameaça. Quando se sabe que o Memorando exige o corte de um terço nos medicamentos, que o corte no Serviço Nacional de Saúde no Orçamento para 2012 é de 1000 milhões de euros e que a “refundação” ameaça com o corte de 3.500 milhões na Saúde e na Educação, a ser apresentado à Troika já em Fevereiro de 2013, estamos a discutir com a corda na garganta. Por isso a palavra” racionamento” é perigosa. Não podemos esquecer que as palavras têm conotações e que admiti-las é passar do subjectivo ao objectivo. Houve racionamento durante as guerras mundiais. Estamos em guerra?

Se estivéssemos a discutir um orçamento global decente, era possível fazer uma reflexão que levasse a tirar de algumas áreas para pôr em outras. Poupava-se em áreas da saúde, mas essa poupança não saía da saúde e seria integrada noutras necessidades. Seria assim na perspectiva da discussão dum orçamento participativo. Mas não é o caso. O corte é sempre para encolher o orçamento global, a poupança é sempre para sair. Numa mudança que se espera que seja breve, porque a população não aguenta mais sofrimento, esta discussão alargada e a aplicação do orçamento participativo, por exemplo nos Centros de Saúde, que actualmente são controlados ao cêntimo pelas Administrações Regionais de Saúde, seria uma bela inovação, não esquecendo que a crise vai durar mais tempo que uma gripe e não se cura com xaropes. 
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