19.1.14

As manifestações de 17 a 19 de Janeiro de 1974, na Beira (Moçambique)


(Jorge Jardim com uma das filhas)



Um texto de Jorge Pires da Conceição, escrito para este blogue, sobre acontecimentos muito pouco divulgados ou já esquecidos:

Foi há 40 que ocorreram na Beira, Moçambique (e também na então Vila Pery, hoje Chimoio), manifestações da população civil branca contra as Forças Armadas portuguesas, acusando-as de inépcia e incapacidade de estancar o avanço da guerrilha.

As manifestações na Beira de 17, 18 e 19 de Janeiro, dando continuidade às já havidas em Vila Pery nos dias 15 e 16, chegaram a atingir um grau de violência bastante elevado, incluindo agressões físicas de oficiais do Exército e pelo menos o apedrejamento da messe de oficiais do Exército, no Macúti, com a destruição de vidraças e de janelas.

Tais movimentações foram despoletadas em consequência duma acção da Frelimo na província de Manica, perto de Vila Pery, de que resultou a morte da mulher dum fazendeiro branco.

Estas manifestações marcaram o início de um período de tensão politico-militar de, pelo menos, duas semanas e, de certo modo, vieram a relacionar-se com a Revolução do 25 de Abril, na medida em que levaram os oficiais do Quadro Permanente operando em Moçambique a tomar posições e a manifestar-se em grupo.

Adiante apresento uma cronologia destes acontecimentos e das suas consequências imediatas (com base nas páginas na “net” «Guerra Colonial 1961-1974» e «Abril de Novo – Memórias do PREC»), mas antes farei uma breve introdução, tentando enquadrar o que se passou.

A Frelimo, que iniciara as suas actividades nos distritos do Norte – Cabo Delgado e Niassa – progredindo depois também para Tete (sem, no entanto passar pelo distrito da Zambézia), só em 1973 começou a fazer pequenas aparições no norte dos distritos de Manica e Sofala, sendo a acção de Vila Pery, já em 1974, a mais próxima do corredor Beira-Rodésia do Sul (hoje Zimbabué), embora já tivessem surgido outras pequenas acções em áreas rurais perto do Parque da Gorongosa, mas sem vítimas.

É de referir que a população civil branca, nas zonas aonde ainda não se manifestara a guerrilha, tinha uma atitude de indiferença em relação à guerra em Moçambique e uma relação de distanciamento (por vezes mesmo de “segregação”) relativamente aos militares metropolitanos, dos quais, no entanto, aproveitavam os proventos financeiros, desde o seu peso no comércio local e territorial até à actividade da construção civil e indústrias afins, passando pelos frequentíssimos “jeitos” de cambiar moeda local em moeda nacional, bem mais valiosa.

Assim, sentindo que a guerrilha lhes começava a aparecer “no quintal” despertaram para a sua existência, assustaram-se e indignaram-se contra quem julgavam estar ali de veraneio.

É preciso dizer-se que a Beira, por ser a porta de entrada em Moçambique para quem vinha da então Metrópole por via aérea e também por ter um porto marítimo ao qual estava ligada uma das suas principais vias férreas (a que ligava a Beira à Rodésia do Sul e a Moatize, perto da cidade de Tete) de penetração numa das principais zonas de guerra, embora não tivesse a importância militar que tinha a cidade de Nampula, sede do Comando Militar de Moçambique, tinha vários quartéis de relativa pequena dimensão que tinham uma função de retaguarda importante no apoio às unidades do mato e a todos os militares de passagem.

A messe de oficiais do Exército, situada no Macúti em frente da praia do Estoril, era para os oficiais de passagem também local de um pequeno descanso de um ou dois dias. Mas não era um local de férias, como a população civil poderia julgar, embora aí residissem algumas esposas de oficiais que andavam em operações no interior.



14 de Janeiro de 1974 - Acção da Frelimo na zona do Chimoio (ex-Vila Pery), no Centro de Moçambique, de que resultou a morte da mulher de um fazendeiro branco, facto que provoca larga agitação e protestos dos agricultores brancos da região.

15 de Janeiro de 1974 – Manifestação de desagrado de fazendeiros e população branca em Manica, Vila Pery, Machipanda e na cidade da Beira, Moçambique, com insultos às Forças Armadas e encerramento dos estabelecimentos em forma de protesto.

15 de Janeiro de 1974 – Telegrama de protesto dos fazendeiros de Manica (Moçambique) ao Presidente do Conselho.

16 de Janeiro de 1974 – Funeral da vítima da fazenda Águas Frescas, em Manica, seguido de manifestação de protesto de colonos brancos junto do encarregado do Governo e encerramentos dos estabelecimentos.

16 de Janeiro de 1974 – A Associação Comercial da Beira convoca uma manifestação de protesto contra a inoperância dos militares, para o dia 17 de Janeiro.

17 de Janeiro de 1974 – Duas manifestação de desagrado da população branca na cidade da Beira, Moçambique, às 8 horas e às 21 horas, com encerramento dos estabelecimentos comerciais, insultos e acusações às Forças Armadas de fazerem «turismo», pedindo repressão ao terrorismo e apoio de armamento para os civis e meios de comunicação, com confrontos físicos com a Polícia Militar e vários feridos.

17 de Janeiro de 1974 – General Costa Gomes, Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, parte para Moçambique a fim de se inteirar das graves confrontações entre a população branca e o Exército.

18 de Janeiro de 1974 – General Costa Gomes, CEMGFA, chega à cidade da Beira Moçambique, às 15h30.

18 de Janeiro de 1974 – Nova manifestação (nocturna) de desagrado da população branca na cidade da Beira, Moçambique, junto da messe dos oficiais, do Comando Territorial do Centro e do Chefe do Estado-Maior, acusando as Forças Armadas de passividade. Suspeita-se que a manifestação foi organizada com implicação de Jorge Jardim e elementos da PIDE/DGS.

19 de Janeiro de 1974 – Nova manifestação (nocturna) de desagrado da população branca na cidade da Beira, Moçambique, acusando as Forças Armadas de passividade.

19 de Janeiro de 1974 – Carta do Movimento de Capitães de Moçambique para a direcção do Movimento dos Capitães em Lisboa, sobre o «enxovalho das Forças Armadas».

19 de Janeiro de 1974 – Conferência de imprensa de Joana Francisco Semião, dissidente do COREMO e da FRELIMO, onde renuncia ao «uso da violência como o único meio para resolver os conflitos com vista à obtenção dos mais elementares direitos humanos dentro do Estado de Moçambique», apoiando «com plena satisfação» as justas «medidas decididas e tomadas pelo governo do Professor Marcello Caetano relativamente a Moçambique».

21 de Janeiro de 1974 – A Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães de Moçambique envia para Lisboa um telegrama a descrever os acontecimentos da Beira, exortando o Movimento a declinar as responsabilidades pela situação política e militar que «ameaça» prolongar-se «em desprestigio das Forças Armadas».

21 de Janeiro de 1974 – Encontro entre o general António de Spínola e o major Otelo Saraiva de Carvalho e capitão Vasco Lourenço, sendo abordada «a indignação que suscitaram» os acontecimento de Moçambique e a intenção do Movimento dos Capitães de difundir uma circular sobre o assunto.
22 de Janeiro de 1974 – Reunião da direcção do Movimento dos Capitães para apreciar a situação em Moçambique.

22 de Janeiro de 1974 – Jorge Jardim define o planeamento de aplicação do Programa de Lusaca, admitindo o recurso a um golpe de Estado em Moçambique.

23 de Janeiro de 1974 – O Movimento dos Capitães de Moçambique apresenta ao Comandante-Chefe das Forças Armadas uma exposição denunciando os acontecimentos da Beira, pedindo medidas para que as Forças Armadas «não fossem enxovalhadas», enjeitado a possibilidade de serem consideradas «bode expiatório» e declinando responsabilidades na situação criada. Esta exposição foi assinada por 180 oficiais.

23 de Janeiro de 1974 – O Grupo de Democratas de Moçambique, liderado por Nunes de Carvalho, expõe as suas preocupações ao general Costa Gomes, durante a visita à Beira, com duras críticas ao regime.

23 de Janeiro de 1974 – Publicada a circular n.º 1/74 do Movimento dos Capitães sobre os acontecimentos da Beira, apelando a que cada militar «dentro das mais estritas regras da disciplina» se empenhe na exigência de um desagravo à instituição.

24 de Janeiro de 1974 – O Movimento dos Capitães de Moçambique, através do capitão Mário Tomé, envia uma carta para o Movimento em Lisboa, versando os acontecimentos da Beira, dizendo que «não nos contentaremos com meias medidas» perante o «insulto demasiado profundo», o qual «atingiu a própria Nação», concluindo que «não podemos continuar a combater por uma causa que a grande maioria da própria Nação não deseja ou não apoia».

27 de Janeiro de 1974 – Abaixo-assinado elaborado pela comissão regional do Movimento dos Capitães na Beira, Moçambique, sobre os últimos acontecimentos.

29 de Janeiro de 1974 – Reunião da direcção do Movimento dos Capitães, com a presença do major Otelo Saraiva de Carvalho, major Vítor Alves, capitão Vasco Lourenço e major Hugo dos Santos, para discutir a situação em Moçambique, sendo decidido manifestar toda a solidariedade com qualquer atitude levada a cabo pelos militares em serviço naquele território.

29 de Janeiro de 1974 – A comissão do Movimento dos Capitães em Nampula, Moçambique, envia um relato circunstanciado dos acontecimentos da Beira, para Lisboa e para as comissões regionais.

30 de Janeiro de 1974 – Reunião entre o general Francisco Costa Gomes, CEMGFA, eng.º Manuel Pimentel dos Santos, governador-geral de Moçambique, e o general Tomás Basto Machado, comandante-chefe de Moçambique, para analisar a situação no território, onde foi aflorada a hipótese de demissão do tenente-coronel Sousa Teles, governador do distrito da Beira.

5 de Fevereiro de 1974Chegada a Lisboa de Jorge Jardim para conversações com o Governo sobre uma proposta de resolução do problema de Moçambique, supostamente apoiada pelos dirigentes de alguns países africanos.


2 comments:

Jorge Conceição disse...

Sobre este "post" o meu amigo João Paulo Guerra enviou-me há momentos os extractos «Jardim e a Independência Branca» e «Capitulo IV - Um Parto com Dor», respectivamente dos seus livros MEMÓRIA DAS GUERRAS COLONIAIS (Afrontamento, Porto 1994) e O REGRESSO DAS CARAVELAS (4 edições, a última das quais da Oficina do Livro, Lisboa 2010).

Estes artigos permitem entender com, muito mais pormenor, a razão de ser destas manifestações e, sobretudo, os seus objectivos imediatos e últimos. A entrevista a Costa Gomes, a propósito, é bem clara: a independência branca, à Ian Smith, a curtíssimo prazo e a sequente liquidação física dos guerrilheiros da FRELIMO.

umBhalane disse...

"...e a sequente liquidação física dos guerrilheiros da FRELIMO."

E como se faria isso???!!!

Muito "inteligente!!!