20.5.14

Benfica



Para esquecer a campanha eleitoral durante uns minutos, mais uma «Redacção da Guidinha», de Luís Sttau Monteiro. E não podia vir mais a propósito, quando Benfica é o centro de Portugal e não só.

«Lá para o fim do mundo onde a terra não acaba porque ainda há a Venda Nova e a Reboleira e a Amadora e onde o mar não começa porque fica longe como burro fica a aldeia de Benfica que alguns chamam de Malfica porque fica tão longe que os transportes não chegam lá senão depois de uma data de horas de viagem em que morre gente em que se dá à luz e em que se fazem e desfazem casamentos e em que se apanha tanta pisadela e tanto beliscão que se chega lá a Benfica com os pés e o cu numa lástima a minha prima Amélia que vive lá depois de um ano de viagens teve de mandar vir um cu de plástico da América porque o dela tinha-se gasto quem quiser ir de Lisboa a Benfica de carro pode ir pelo mapa pela bússola ou à sorte o pior é que se for à sorte não chega lá mas também não perde nada com isso porque a única coisa que lá há é o Jardim Zoológico e como Lisboa agora é toda ela um jardim zoológico quem é que quer ir ver o de Benfica? Outra maneira de uma pessoa que vai para Benfica de carro se entreter é ir contando os polícias de trânsito que estão por lá aos magotes ao fim da tarde o que explica o facto de haver tanto roubo em Lisboa porque se está mesmo a ver que os polícias foram todos parar à Polícia de Trânsito para caçar mais qualquer coisita aos automobilistas o meu pai diz que entre o Governo aumentar os preços das gasolinas a Polícia de Trânsito a caçar multas e os buracos das ruas a darem cabo das suspensões o diabo que escolha é tudo uma cambada de ladrões enfim estas coisas não se podem dizer senão começam logo a acusar a gente de estar a criar entraves ao Governo quando se está mesmo a ver que o Governo é que passa a vida a criar entraves à gente a gente anda tão entravada tão entravada tão entravada que não sabe o que há de fazer à vida é por isso que há tanta gente em Benfica é uma forma de emigração como qualquer outra só que para a nossa desgraça os emigrantes que vivem em Benfica não têm o carinho das autoridades o senhor Presidente da República não fala deles quando bota o discurso sobre as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo e no Dia de Camões não se lembraram deles e nem mandaram lá um senhor das Forças Armadas botar falação patriótica isto é uma injustiça por um lado mas é uma sorte por outro sim porque sempre se safaram de ouvir mais uma falação diz-se que o senhor Presidente da República agora que veio do Brasil vai em visita oficial a Benfica se isso é verdade ele que venha de helicóptero porque se vier de transporte público só cá chega lá pelo século XXII de qualquer forma há qualquer coisa que não se entende porque nossos bravos militares já não andam de helicóptero como andavam durante o prec que andavam sempre de helicóptero com um ar muito apressado e muito cómico como se andassem a salvar a Pátria e isso enriquecia muito o folclore nacional e punha a gente a rir não havia nada mais engraçado do que vê-los sair dos helicópteros de blusões negros com um ar bestialmente bélico eu tenho pena que isso tenha se acabado porque isto é um país triste e nessa altura era divertido só era pena não andar ainda por cá o senhor Eça de Queiroz que se esse tivesse tido tempo de os descrever antes de morrer a rir a gente tinha ficado com uma literatura mais rica e esses dos helicópteros sempre tinham enriquecido a literatura do País porque com as falações que fazem não chegam lá nem lá nem a parte nenhuma isto quem não tem helicóptero não tem nada e quem tem helicóptero tem tudo mais vale ter um helicóptero na mão do que dois a voar filho de helicóptero sabe nadar helicóptero escondido com o rabo de fora helicóptero a helicóptero a galinha enche o papo quem não quer ser helicóptero não lhe veste a pele basta de helicópteros que de helicópteros andamos todos fartos olá se andamos só não anda farto de helicópteros quem tem saudades de andar de helicópteros e nós que os pagávamos mas não andávamos neles não temos saudades nenhuma eu quando vejo um helicóptero fico a tremer com medo que eles voltem só tenho pena de não haver helicópteros para Benfica por causa da tal qualidade da vida sim porque como é que se pode falar da qualidade da vida de uma pessoa que se levanta às seis e meia da manhã para chegar às nove ao emprego de que sai às seis para ir a correr para a bicha do autocarro ver se consegue chegar a casa às oito para comer uma bucha fria porque está toda a gente tão cansada que ninguém tem coragem para ir aquecer o carapau familiar sim quem é que pode falar da qualidade da vida às pessoas assim ou pedir-lhes que vão a museus e a concertos e a exposições coitados eles não chegam a casa em estado de ir a parte nenhuma o que eles querem é mandar toda a gente àquela parte enfim vou continuar a falar de Benfica e vou indicar as instituições de Benfica para os turistas que lá quiserem ir a principal instituição cultural de Benfica é a pastelaria Califa onde se juntam os intelectuais da região para beberem bicas e para comerem pastéis de Belém têm todos pêra pelo menos os que têm barba e há alguns que têm bigodes e barba toda a gente sabe que a barba dá um ar bestialmente intelectual é por isso que é bestialmente fácil saber quem é que é intelectual e quem não é a regra é simples os verdadeiros intelectuais não têm barba o único que tem é o Júlio Caldeireiro mas esse é especial porque não é um intelectual full-time digamos que faz o seu biscate de intelectual mas que o resto do tempo está na Brasileira e basta isso para não ter direito ao cartão do sindicato ora na Califa todos têm barba o que dá logo a entender à gente que aquilo é a Brasileira de Benfica o que é o mesmo que dizer que nenhum intelectual lá põe o chispe há vinte anos outra instituição de Benfica é o Nilo que é um café que há lá não me lembro de mais nada e estou farta de escrever adeus.»

O Jornal, 16/6/1978
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