31.3.15

Do medo



Leio, no Expresso on-line, que a fotografia de uma criança síria de quatro anos de mãos no ar e olhar acossado, se tornou viral nas redes sociais no passado fim de semana. Talvez também porque o que assusta a criança é, não uma arma, mas uma máquina fotográfica, “sinal de que”, escreve o jornal, “o quotidiano de pânico deixa marcas em toda uma geração”. Opinião corroborada, na mesma notícia, por uma psiquiatra infantil, Ana Vasconcelos: “É o mesmo mecanismo da história do Lobo Mau, quando, no escuro, a criança receia que esteja lá o lobo. É sinal de que se sente permanentemente ameaçada".

A notícia lembrou-me a história que me contara recentemente uma jovem lisboeta. Estivera num café com um grupo de amigos e, à saída, o empregado chamara a atenção de que um dos consumos ficara por pagar. Ela lembrava-se de ter pago, mas não guardara a factura. Surpreendeu-a, por isso, a forma imediata como outros apresentaram as suas. Curiosamente, eram os que vinham da periferia, dos chamados “bairros problemáticos”.

Talvez ela nem tivesse reparado nisso, não fora estarem ainda recentes as queixas sobre a violência policial na Amadora. Ao seu espanto, responderam: “Temos que estar sempre preparados para mostrar que não roubámos.”

É que o Lobo Mau era só na história, na floresta, na casa da avózinha – e as prisões, os espancamentos, os tiros, a morte de amigos, a perda da casa, da família, dos vizinhos, a mudança para um asilo de sem abrigo ou um campo de refugiados, esses, são reais.

Talvez se pudesse pensar em trauma, mas o termo é normalmente reservado a casos socialmente mais aceitáveis, catástrofes naturais ou provocadas, exércitos regulares, vítimas de actos de terror de grupos informais, a violência exercida pelas instituições do Estado não entra nesta contabilidade. Penso, no entanto, naquelas crianças de Santa Filomena que, saídas de manhã de casa, ao voltar da escola só encontraram escombros... E pergunto-me se não terão, também elas, reacções de medo que, um dia, quem sabe, em relação a elas ou ao menino sírio da fotografia, se transmutarão em violência, para grande surpresa e indignação de nós, os outros, os que até gostam de ser fotografados e se podem dar ao luxo de esquecer a prova de pagamento de um café.

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