25.10.15

O processo de apagamento em curso



Este texto, que Ferreira Fernandes publicou ontem no DN, é genial. Aqui fica, na íntegra:

«Gostaria de conviver (três minutos, não mais) com Aníbal Cavaco Silva, vocês sabem, esse. Eu só queria saber o que se passa quando ele pede um café. Suspeito que o pedido cause grande rebuliço no Palácio de Belém. O empregado da copa começa por não entender o que foi pedido. O chefe da Casa Civil, Nunes Liberato, aconselha calma, e pondera que talvez o Presidente nem tenha pedido nada. A assessora das Relações Internacionais divaga, não se querendo comprometer, "talvez seja qualquer coisa relacionada com Timor, talvez com a Colômbia". Nuno Sampaio, dos Assuntos Políticos, considera que o momento não é para estimulantes, mais valia camomila.

O consultor Fernando Lima faz um sorriso de quem entendeu tudo mas não diz nada, próprio de quem já não é ouvido, e pensa: "No meu tempo, eu não teria dúvidas de que ele pediu um café, mas também sei que se a coisa desse para o torto ele negava." O consultor para a Inovação, Jorge Portugal, hesita, mas acaba por ousar: "Eu por mim, trazia-lhe um negroni, o cocktail da moda." José Carlos Vieira, da assessoria para a Comunicação Social, de memória toma nota de todas as interpretações, sendo certo que fará um comunicado assaz vago. E a assessora do Gabinete do Cônjuge, Margarida Mealha, depois de um telefonema, sussurra para o empregado: "Um café, mas não traga açúcar"...

Como não tenho o número do telemóvel da doutora Maria Cavaco Silva não sei bem o que dizer da comunicação do PR sobre a situação política, proferida na quinta-feira. Mas, como todos, tenho a minha interpretação e, essa, entendi bem. Desde logo, notou-se no discurso o dedo da cônjuge: amargo, não trazia açúcar nem adoçante. Depois, confirmou-se que Cavaco Silva, homem que lida mal com as palavras, deve ser ouvido mais pela sua linguagem gestual. Assim, quando apontou, esticou o dedo, enfim, indigitou Passos Coelho, todos entendemos que o líder do PSD foi mandado fazer governo. A seguir, foi a fúria de palavras, não como se tivesse engolido uma fatia de bolo-rei mas, desta vez, uma broa de Avintes. E inteira.

Em palavras, Cavaco Silva começou por prestar homenagem à Constituição e respeito sem condições pela Assembleia da República: entregou a decisão aos digníssimos 230 deputados. Essas pedras basilares da vontade do povo português, disse, podem - e saberão certamente fazê-lo - consubstanciar o desiderato da Nação e aprovar o governo de Passos Coelho. Cavaco fez uma pausa e prosseguiu: "Agora, meus meninos [e, aí, pôs o tal dedo em riste com que fala melhor e ficou todo afogueado], se alguém tiver a lata de boicotar isto, atiro-lhe com uma gorpelha de figos à cabeça!", disse Sua Excelência o Presidente da República. Já as câmaras se apagavam e ouviu-se gritar: "Andem cá! Ninguém disse que já acabei..." e viu-se o PR a espernear e a ser levado por Nunes Liberato, que se voltou para os telespectadores, encolhendo os ombros e fisgando um sorriso tímido que pretendia tranquilizar-nos.

Resumindo, voltando aos gestos, porque é assim que se entende melhor Cavaco Silva, na quinta-feira foi-nos mostrado o boletim do dia 4, sobre o qual pusemos uma cruzinha, dobrámos e metemos na urna. Mostrado o voto, apareceu um indicador a fazer de limpa-vidros, da esquerda para direita. A imagem voltou outra vez ao voto - continuo a contar-vos o resumo da comunicação de quinta, à hora dos telejornais - e apareceu o PR, mestre-escola zangado, a dar-nos uma lição. Com uma esferográfica no punho, o PR riscou a linha dizendo "CDU" e as imagens da foice e do martelo e do girassol. Depois, o PR riscou a linha dizendo "Bloco de Esquerda" e a imagem da estrelinha de quatro pontas e uma cabeça. A câmara mostrou Cavaco, olhos furibundos: "Perceberam?!"

Dando-se conta de que talvez não, Cavaco voltou ao boletim. Desta vez, com a parte azul, a mais abrasiva, duma borracha, Cavaco continuou a sua sanha contra aquelas duas linhas malditas. Olhou-nos, outra vez: "E, agora, já perceberam?!" Achando-nos estúpidos, ele insistiu na explicação: com um X-ato, cortou as duas linhas. E com a convicção de que uma imagem vale mais do que cinco pareceres de constitucionalistas mostrou-nos os dois finos buracos em rectângulo: os comunistas e os bloquistas tinham sido abolidos da democracia portuguesa. Eu estava num café quando ouvi o senhor Presidente da República. Olhei à volta e foi terrível. Percebi que as pessoas agora nem por gestos entendiam Aníbal Cavaco Silva. Aquilo era um olhar alucinado e poucos viram isso.

Saí do café a matutar na velha e desiludida ideia de que as pessoas só entendem quando lhes batem à própria porta. O abuso cometido, por enquanto, é só um problema "deles", os do PCE e do BE, só 996 872 portugueses, só 18,44% dos votantes, a quem acenaram com um direito que depois rasuraram, mas só a eles. Ninguém, para lá dos comunistas e dos bloquistas, pensou: e se amanhã outro alucinado também me quiser apagar?» 
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