14.5.16

Ascensão e queda da privacidade



José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«Demorou mais de 200 anos para uma parte importante da população ocidental conquistar não só um direito à privacidade, como condições para o exercer de facto. Não foi uma conquista generalizada, seguia uma fractura social. Os mais ricos, mas também a classe média e remediada, podiam usufruir de condições de vida que incluíam a intimidade e um módico de privacidade, embora os mais pobres continuassem a ter uma vida promíscua, sem “espaço” para ter privacidade. (…)

Com a melhoria das condições de vida de parte considerável da população, aumentou esse espaço privado. Mas, insisto, uma parte ficou e fica de lado, quando se habita em pouco mais de um quarto e uma cama, e se faz tudo no mesmo espaço. É por isso natural que o valor da privacidade estivesse muito associado a quem tinha a possibilidade de a ter. Os pobres têm toda uma outra lista de necessidades antes da privacidade, mas quando uma família sai de uma barraca e vai para um pequeno apartamento num bairro social, é o “espaço” a primeira coisa que refere em entrevista.

Hoje tudo isto está a andar para trás, a privacidade, as suas condições e o seu valor, estão a ser postos seriamente em causa e é preciso ter cada vez mais riqueza e poder para garantir alguma privacidade, débil que seja. O que se está a passar é que duas forças poderosas estão a minar a conquista da privacidade e a ideia de que “ninguém tem nada a ver com o modo como vivo a minha vida”, desde que não cometa crimes.

Essas duas forças são o estado moderno e a sociedade urbana dos nossos dias, num processo que se desenvolve dos mais jovens para os mais velhos. O estado actual, e estou a falar do estado democrático e não totalitário, está cada vez mais a arrogar-se o direito de espiar a vida de todos os cidadãos, a começar por essa parte vital que são as suas comunicações, mas também todos os aspectos da sua vida quotidiana. (…)

As escutas sistemáticas feitas por quase todos os grandes países democráticos, com relevo para os EUA, o Reino Unido, de todas as comunicações, insisto de todas as comunicações, muito para além da lei, representam uma ameaça à privacidade sem paralelo no passado. O pretexto é o terrorismo, mas é mau pretexto, porque a maioria dos crimes de terrorismo recentes são particularmente desleixados em matéria clandestina, usam métodos muito pouco sofisticados, e, se não fossem erros clamorosos dos serviços de informação e das polícias e a substituição de técnicas de intelligence, como a chamada humint pela aparente facilidade da espionagem electrónica generalizada, teriam sido detectados.

No caso português, o estado arroga-se, principalmente no fisco, a utilização de processos absolutamente invasivos da privacidade, sem ninguém mexer uma palha, enquanto, como todos sabemos, não vê os offshores que lhe passam à frente. (…) O que há hoje no Portugal democrático mais próximo de um estado totalitário é o comportamento da Autoridade Tributária, mas, como a cultura de privacidade nunca foi muito forte entre nós, tudo se consente ao estado em nome de uma suposta eficácia e necessidade. (…)

As alterações de sociabilidade que já existem nas “redes sociais” e no uso de telemóveis, relógios e aplicações “inteligentes”, a que se vira somar a “internet das coisas”, com os seus carros que comunicam trajectos, frigoríficos que encomendam comida, e roupa que consulta o médico se quem a usa tiver febre, anunciam um “mundo novo” muito pouco amável para o valor da privacidade. Com a introdução de devices que actuam sobre o nosso corpo, sobre o sistema nervoso, então aí há um problema sério com enormes repercussões sociais.

Todos estes aparelhos são excelentes quando usados por quem percebe certas fronteiras éticas e de civilização. Mas eles são como as drogas e a manipulação química do nosso corpo. Talvez nos façam mais felizes a curto prazo, mas fazem-nos menos humanos. Bem sei que isso hoje não conta para nada, mas, como nas distopias, quando as máquinas nos atacarem, ver-se-á se fomos ou não longe demais.» 
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