24.5.16

Da vergonha alheia que se sente ao ver telejornais



«Há inúmeras maneiras de descrever um acontecimento, mesmo que se respeite a verdade dos factos - ou melhor, mesmo que haja um esforço para não distorcer qualquer facto. Meia dúzia de testemunhas de boa fé de um mesmo acontecimento podem apresentar narrativas diferentes do mesmo. (…)

Isto significa que fazer um jornalismo como deve ser feito - independente dos poderes, que não tenta beneficiar determinado grupo, que faz um retrato justo do mundo, que trata todas as fontes de forma leal - é difícil.

Mas então é impossível fazer uma descrição honesta da realidade? Não, significa apenas que essa deve ser uma preocupação constante.

Vem isto tudo ainda a propósito do polémico segmento do telejornal de há umas semanas onde José Rodrigues dos Santos explica, à sua maneira, como evoluiu a dívida pública portuguesa. É evidente que se trata de uma explicação enviesada, que selecciona certos dados e escamoteia outros, que possui como subtexto a ideia de que a dívida é da responsabilidade exclusiva dos governos do PS. Esse subtexto recorre a dados verdadeiros mas é desonesto porque escamoteia tudo o que não valida a tese do pivot e, por isso, o segmento inscreve-se no que se chama “propaganda”, algo de que os jornalistas se devem abster, mas é curioso verificar que as críticas feitas a JRS foram classificadas pelo próprio e por outros campeões da objectividade como “censura”. Porque é que isso é curioso? Porque essa reacção prova que o segmento de JRS não foi uma falha inconsciente, que o próprio estaria disponível para corrigir, mas um gesto intencional, um enviesamento deliberado. (…)

Que a SIC tenha como editor o alegre propagandista José Gomes Ferreira tem de se aceitar como mais um castigo dos mercados. Que a RTP pública imite o que de pior se faz no jornalismo televisivo e se sinta obrigada a convidar para todos os seus painéis um direitista de serviço do Observador (nem sequer identificado como tal), lamenta-se.

Há bom jornalismo na RTP, mas ele aparece sempre nos interstícios de um discurso que não foge da narrativa hegemónica da direita neoliberal, dos terrores dos “mercados” aos ralhetes de Bruxelas, da respeitabilidade da banca aos riscos em que uma política de esquerda nos coloca.

José Rodrigues dos Santos diz, em resposta às supostas pressões, e bem, que o jornalismo deve ser independente do Governo. Eu também acho. Teria gostado que ele próprio o tivesse sido no governo anterior e gostaria que o fosse agora. Mas duvido que saiba como isso se faz.»

José Vítor Malheiros

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