18.4.17

A França, nossa vizinha



«Creio que não se consegue encontrar ninguém à esquerda que responda simultaneamente a duas condições: primeira, aceitar a União Europeia como instituição capaz de cumprir a sua promessa; e, segunda, acreditar que é realizável um plano concreto de reforma democrática que corrija as suas contradições. Entendamo-nos antes que me bombardeiem: há por certo muito quem ache que esta União é o destino celestial, é a própria ideia de Europa, que encarna a paz, a prosperidade e até o Estado Social mas, com uma vénia, prefiro não discutir misticismos, tanto mais que até os iluminados se aperceberam, e alguns com quanta amargura, que Merkel e Hollande e Dijsselbloem não são os corifeus angelicais que nos conduzirão ao paraíso. Por isso, a contradição é esta: os que têm fé na União que nos pintaram sabem que não há forma de cumprir tal promessa e que nos afastamos inexoravelmente desse encantamento. Depois do ignóbil acordo com a Turquia sobre os refugiados, depois da austeridade curativa imposta a Portugal e outros países, depois da falência da Grécia, o tempo para a inocência acabou.

É precisamente isso que nos lembra a França na última semana da sua campanha eleitoral. A crise francesa é filha do vazio europeu ou, mais ainda, é o preço de uma política que destroça os regimes a que foi retirada a legitimidade e a capacidade de criar expectativas para a vida das pessoas. No que é porventura o país mais politizado da Europa, onde começaram todas as grandes esperanças e tragédias dos séculos XIX e XX, a disputa resume-se então a isto: o único candidato obediente-europeista é o homem do centro político, um aventureiro financeiro, Macron; os dois partidos que têm governado sucessivamente parecem estar afastados da disputa, com Hamon, do PS, abaixo dos 10%, e os Republicanos, a direita gaullista tradicional, remando contra a dissolução pelo escândalo; na direita, a candidata forte é Le Pen, dando corpo a um discurso nacionalista de extrema-direita; e o único candidato viável à esquerda, o que mais tem subido nos últimos dias, Mélenchon, é porta-voz da ruptura com os tratados europeus e o seu directório. (…)

Foi a emergência de um candidato à esquerda que mudou a paisagem eleitoral francesa, dado que Mélenchon respondeu ao colapso do centro e da direita tradicionais, mobilizando energias das lutas populares e da identidade nacional em resposta à perseguição que a União move contra as políticas sociais. Ele constitui o único antídoto que enfrenta Le Pen. Creio que é por isso que a sua candidatura cresce tanto nos últimos dias: passou a ser a voz da esquerda social contra o sono da razão. Ora, se as eleições são a única válvula de escape contra a mais opressiva das opressões, o discurso da inevitabilidade do empobrecimento em benefício da plutocracia e da cizânia entre comunidades, temos pela primeira vez uma resposta ao risco da extrema-direita: perdido o centro, é do surgimento de uma nova esquerda que queira ser maioritária que depende a salvação de uma política de bem-estar contra o fanatismo do mal-estar.»

Francisco Louçã

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