«Até ver, o problema que neste momento envolve Montenegro é político e ético. Por isso, talvez seja produtivo não cairmos na tentação de judicializar a questão. Os factos estão à nossa frente e de forma inelutável: enquanto primeiro-ministro, Montenegro detinha uma empresa com a mulher e filhos, com sede em sua casa e o seu telemóvel como contacto, que continuou a prestar alegados serviços a um conjunto de clientes empresariais, angariados pelo próprio nas suas redes de influência política regionais. Sendo que o negócio de uma parte significativa desses clientes depende de concessões, decididas pelo Governo.
Já se percebeu que o primeiro-ministro estava consciente do que estava em causa, ao ponto de ter procurado omitir informação junto do Tribunal Constitucional. Montenegro até pode ter cuidado da legalidade procedimental (sobre isso, a justiça pronunciar-se-á, se for caso, no seu tempo, necessariamente lento), mas os factos são suficientemente ineludíveis para nos permitir, sem eufemismos, fazer um juízo ético definitivo: trata-se de uma conduta não compatível com o exercício da função. O que se sabe suscita diversas perguntas que carecem de resposta, mas o que já se sabe basta para não necessitarmos de saber mais.
Talvez mais este caso nos ajude a compreender as limitações do princípio tão glosado de que a ética republicana é a lei. Não só não é, como não pode ser. O cumprimento da lei não esgota todas as exigências que se colocam na vida pública e, ainda menos, no exercício de cargos políticos. Aliás, é também por termos abdicado da faculdade de fazer juízos para além do que a lei prevê que a democracia portuguesa se encontra no estado atual.
No que parece encerrar um paradoxo, enquanto se procura limitar a ética à lei, assiste-se a um processo imparável de judicialização da atividade política. A multiplicação de comissões parlamentares de inquérito – feitas à medida de deputados desejosos de brilhar em longos diretos televisivos e de televisões que carecem de formatos económicos e que geram audiências – é um sintoma pernicioso desta dinâmica parajudicial. Mas, bem mais funesta é a ideia de inspiração trumpiana de que o plebiscito amnistia ilícitos ou práticas eticamente reprováveis.
Aproximamo-nos perigosamente desses dois registos, que parecem, aliás, viver em tensão. Para uns, o PS, deve avançar-se para mais uma comissão parlamentar de inquérito, para outros, o Governo, a ida a votos é uma forma de os portugueses se pronunciarem sobre a conduta de Montenegro. Ambas as posições assentam em equívocos, ainda que de escalas distintas.
Há certamente mais questões a pairar sobre Montenegro, como sugerido pela catadupa de notícias. Mas o que sabemos é suficiente para reconhecer que este primeiro-ministro em concreto é politicamente inviável. Recorrer, de novo, a comissões de inquérito só infligirá ainda mais danos às instituições da República. Mais grave é, contudo, a ideia de que o resultado eleitoral permitiria superar os irritantes éticos que acompanham Montenegro, transformando as eleições num gigantesco julgamento popular, legitimador e de veredicto definitivo.
A sensação com que se fica ao assistir a tudo isto é que, também por cá, nos aproximamos de um daqueles sombrios momentos de interregno, quando, para parafrasear W. B. Yeats, tudo se desmorona e o centro não se sustém. Nesse que é um dos seus mais belos poemas, o irlandês alertava, também, que “aos melhores falta toda a convicção, enquanto os piores estão cheios de intensidade apaixonada”.»